O ALTRUÍSTA

Péricles e Borges – até então – amigos figadais. Borges bastante tímido, Péricles bastante magro. Comparsas!... Admiravam-se, como admiravam-se!... Uma alegria mórbida apraz Péricles quando vê Borges subjugado, em estado de subserviência, fêmea. Depois, sofria. E como sofria!... No íntimo no íntimo, sabe que Borges, seu companheirismo, precisa, sem falta, de uma mulher, com certa urgência.

Pederastas?... História!... Conversa mole pra boi dormir. Quem sou eu para aumentar um ponto?... Pederastas?... História!... Conversa mole pra boi dormir.

A primeira vez que vi Péricles foi num pé-sujo, esquina da Carlos Gomes com a Avenida Sete. Chovia. Bebia conhaque. Quis um gole. Frio. Muito frio. Minha primeira talagada de conhaque. Boca perfumada!... De amor sofríamos. Todos os que sofrem de amor exalam bom hálito. Chove. Boca perfumada!... Falei-lhe do Djalma, que fugiu da minha armadilha; falou--me do Borges, com uma riqueza impensada de detalhes.

– Gestos curtos, cheiro de anjo, olhar de santo!...

Fica mais. Só mais um pouco. O buzu só passará por aqui depois que a chuva morrer. Só mais um pouco. Fica? Parece que o conheço desde a minha mais idiota infância. Amas o Borges! Água na boca. Jamais conheci um homem com cheio de anjo, olhar de santo, gestos curtos... Encanta-me! Eu, como ele, também prefiro mais as humanas que as exatas; como ele, também gosto mais de chá que de café. Homens com gestos custos me tiram do sério. Afinal afinal, já estão afiados para o vestibular? Passarão?...

– Quer conhecê-lo?

E esvazia o copo de conhaque. A chuva morre. O último buzu passa do ponto.

– É perto. Vem conhecê-lo!

Afiadíssimos! Apaixonaram-se num cursinho pré-vestibular. Doía-lhe ver os amigos o tachando de maricas. Pederastas, viados, gays, homossexuais. Quanta estupidez!... Borges precisa, com certa urgência, de alguém com fomas femininas. Alguém como eu. Lhe fiz um sim com a cabeça.

– Teu nome?

Hildete. Feito.

– Eis o Borges!

Bem-feito! Come-me com os olhos, mas logo os abaixa. Que morenaço! Pensa. Que morenaço! De fechar o comércio. Proximidade. Gesto curto. Um só beijo, um só abraço. Cheira a anjo! Em sua boca, o melhor dos hálitos. Tímido, tarado!... Cuidado, Hildete, cuidado. Péricles ao seu lado, enciumadíssimo, de coração cortado. Finge,

Bar de sala, radiola hi-fi. Outro conhaque. Eu, cada vez mais próxima do hálito de Borges. Pulmão, ciúme, pigarro. Nunca mais beberei outra dose de conhaque. Enfim, a boca de Borges, perfumadíssima! Meu primeiro beijo em um maricas. Maricas?... História!... Conversa mole pra boi dormir.

Mais outra dose. Péricles vai até o quarto e volta com uma caixa cheia de cartas e fotos. Tarde demais. O Borges já me tinha, avassaladoradamente. Rasga fotos, cartas, apostilas... Teme uma comparação de hálitos. Dá fim na garrafa de conhaque e pede embriagado:

– Strip-tease!

Tiro o que me resta de roupa. Toda a roupa.

– Felicidades.

E desce silenciosamente as escadas, e deixa comigo aquele primor de gestos curtos, de boca perfumada. Borges, virgemzinho de marré-de-si, nunca mais amigo figadal de Péricles. Ah, as formas femininas!...