CONTO RODRIGUIANO
CONTO RODRIGUIANO
Quem conhecia Olegário sabia que se tratava de um zero à esquerda. O sujeito era uma dessas figuras tísicas de braços finos que ninguém jamais imaginaria erguendo a voz em algum eventual momento de destempero. Os amigos da repartição achincalhavam Olegário e lhe davam apelidos jocosos, dentre os quais o mais popular era "Banana". Olegário não protestava , talvez amparado na terrível consciência que de fato sua fraqueza era algo consolidado. Em segredo, atribuía às mulheres da sua vida seu comportamento reprimido e num sorriso amargo se reconhecia como um fracote de carteirinha. Um fracote assumido, repetia macambúzio, como se o reconhecimento do seu status de humilhado representasse um último fio de dignidade na sua existência de banana.
A MÃE
Olegário era filho único de dona Euzébia e diante da viuvez precoce da mãe, foi submetido à toda sorte de super-protecionismos pela autoritária mulher. Dona Euzébia controlava todos os passos do filho único e diante daquela figura autoritária, Olegário sempre sucumbia numa espécie de resignação bovina. Foi Dona Euzébia que impôs a Olegário o curso de Direito quando o filho chegou à idade madura. Foi Dona Euzébia quem arranjou o emprego na repartição do primo Tavares, a quem Olegário secretamente odiava, por suspeitar das conversas que mãe e primo travavam ao pé do ouvido quando ele virara as costas. Dona Euzébia comprava as roupas do filho, controlava as amizades, impunha casaquinhos nos dias de meia-estação e além de tudo, determinava o horário de chegada quando eventualmente ele saia pra sinuca.
-Quero você aqui no máximo dez e meia! E sem bafo de cerveja!
E quando Olegário entrava pela porta, dez e meia em ponto, Dona Euzébia cheirava o hálito do moço pra depois dar-lhe um beijo agradecida e colocá-lo na cama.
MARIA ANGÉLICA
Foi na festa de confraternização do escritório que Olegário conheceu Maria Angélica, a prima de uma das secretárias. Longe de ser um primor de beleza, Maria Angélica atraiu Olegário principalmente pelas ancas salutares e depois de muito remédio pra asma, dois dias depois ele tomou coragem e convidou a moça pra sair. Dali a pouco estavam namorando e Olegário, de maneira prudente, preferiu omitir a novidade à sua mãe. No entanto, Dona Euzébia conhecia o filho melhor do que ninguém e cercou de todos os lados.
-Eu te conheço, meu filho. Aí tem dente de coelho.
-É uma moça, mãe..., respondeu Olegário com o fio de voz característico.
“Batata!”, disse a mãe, triunfante. E voltando ao bordado, completou num tom de general :
-Trás a menina aqui amanhã.
Com a falta de força habitual, Olegário deu um suspiro e comunicou a imposição materna à Maria Angélica, que naquela altura dos acontecimentos estava decidida a se casar com o banana, na carona da recomendação da mãe:
- Pra casar, escolhe o marido banana. Se o homem fiel nasceu morto, o homem banana infiel foi abortado antes da concepção.
O ENCONTRO
A antipatia entre as duas mulheres foi mútua logo no primeiro momento. As duas eram muito parecidas no seu autoritarismo e nesse dia, a voz de Olegário praticamente não foi ouvida, a não ser pra dizer "sim, meu bem" ou "sim, mamãe". Depois que Olegário deixou Maria Angélica dentro do bonde e voltou pra casa, Dona Euzébia esperava o filho na sala com uma recomendação veemente:
-Não é mulher para você, meu filho.
HOMEM, AFINAL
A princípio, Olegário deu o suspiro da resignação bovina, mas à noite, na cama, ao se recordar do belo rabo de Maria Angélica, tomou a decisão. Na manhã seguinte, ainda que abatido pela falta de sono, declarou num fio de voz que iria se casar com Maria Angélica, não se importando com o não consentimento materno. Dona Euzébia fez toda a sorte de chantagens emocionais, chorou e se descabelou, mas Olegário pensava nas ancas da namorada e na carona do desejo reprimido, sustentou sua firme posição. Por fim Dona Euzébia, envelhecida e triste, deu a benção contrariada.
-Casa meu filho. Mas palavra de mãe escuta o que eu digo. Tu serás infeliz ao lado dessa mulher...
A CERIMÔNIA
Olegário e Maria Angélica casaram-se no civil e no religioso em cerimônias discretas onde só os familiares e os colegas de repartição eram os convidados. Maria Angélica era uma mulher carnuda e corpulenta e suas proporções abundantes contrastavam com a franzinice do marido raquítico. Um olhar desavisado para o casal poderia supor que, no altar, a noiva estava de fraque e o noivo, vestido de branco. Indiferente à tudo, Olegário sustentava na face o sorriso congelado da euforia além de um olhar de quem declara independência , principalmente quando era dirigido à uma chorosa Dona Euzébia, que durante a cerimônia se consumiu em lágrimas de desgosto e não de emoção.
CASADO
De início, o casamento parecia harmonioso. Olegário engordara, parecia mais seguro e era visto com freqüência nas rodas de sinuca, muito embora voltasse pra casa invariavelmente dez e meia, sem por uma gota de álcool na boca. Aos amigos mais chegados, ele dizia num fio de voz que nunca se sentira tão livre como no casamento, muito embora Maria Angélica controlasse todos os seus passos e seus horários exatamente como fazia mãe. Inebriado pelas noites de amor que a mulher lhe proporcionava, Olegário se submetia ao controle da esposa de bom grado. A mãe, vez por outra, aparecia no apartamento do casal e na ausência de Maria Angélica, repreendia em segredos os hábitos autoritários da mulher. Olegário, surpreendente, não se fazia de rogado e retrucava sem perdão.
-Vai cuidar da tua vida, Dona Euzébia.
-Enfeitiçado!, a mãe dizia entre-dentes, enquanto lágrimas de desgosto faziam nova excursão por suas faces enrugadas.
A AGRESSÃO
Algum tempo depois, Olegário surgiu na repartição de olho roxo. Questionado pelos amigos que ainda lhe davam apelidos maldosos do porquê do ferimento, Olegário foi incisivo.
-Briguei na rua.
Meses depois, um inchaço na boca chamava a atenção dos colegas. A desculpa foi ainda mais esfarrapada.
-Caí da escada.
Durante meses, Olegário vinha trabalhar com um novo hematoma aparente. Os boatos de que o banana apanhava da mulher ganharam força e chegaram ao ouvido de Dona Euzébia. Num misto de desespero e orgulho ferido, ela foi ter com o filho numa exigência contundente.
-Larga dessa mulher. É um pedido que a sua mãe lhe faz!
Mas Olegário, que de fato apanhava da mulher, não dava ouvido às súplicas da progenitora, declarando numa pose de Dom Pedro de botequim.
-Da minha vida cuido eu!
TRAGÉDIA
Numa quinta-feira, talvez vitimada pelo desgosto de ver seu filho cada vez mais estuporado, Dona Euzébia sentiu uma vertigem e caiu no meio da rua. Olegário foi avisado na repartição por Maria Angélica e o casal entrou esbaforido na Santa Casa de Misericórdia. O médico foi seco e taxativo.
-Tua mãe teve aneurisma. Troço irreversível. O coma é provisório. Eu se fosse você encomendava as flores. Bye, bye.
E diante daquela pusilanimidade abjeta do médico, Olegário ficou sem ação. A notícia da morte iminente da mãe operou em sua mente um turbilhão de idéias que a voz não conseguia exprimir. Com seus braços fortes, Maria Angélica tentou consolar o marido, oferecendo uma abraço de conforto. Mas nesse momento, a voz de Olegário soou com firmeza inédita, pra espanto da esposa.
-Maria Angélica, eu quero o desquite.
E a palavra desquite ficou ecoando no salão abobadado da Santa Casa, enquanto Maria Angélica não sabia se chorava ou dava um tapa na boca do marido.
LIVRE
Naquela noite, Maria Angélica tentou bater no marido como de costume, mas Olegário se mostrou tão convicto da sua decisão que a matrona violenta se transformou numa cocotinha indefesa e submissa. Desesperada, a moça se ajoelhou diante das pernas fininhas do marido numa súplica violenta.
-Olha que eu me mato!
-Pois é um favor que me faz!
Na semana seguinte, ele estava de mudança pra casa da sua mãe, que em coma irreversível aguardava a chegada da morte no leito da enfermaria da Santa Casa. Mandou dar os móveis velhos pra caridade, pintou as paredes e instalou uma cama de casal no antigo quarto da matriarca. Na primeira oportunidade, contratou uma prostituta e se lançou a uma noite inteira de delírios inomináveis. Na manhã seguinte, Maria Angélica bateu à sua porta, deu de cara com a menina de programa e engolindo uma humilhação insuportável, fez a última súplica.
-Volta pra mim...
-Fora!, gritou Olegário batendo a porta na cara da ex-mulher.
Na repartição era outro homem. Um colega piadista tentou resgatar o seu passado de banana numa piada inconveniente e recebeu um soco na boca, que apesar de ter sido dado por um sujeito de braços finos, pegou um cheio no dente, exigindo reparos odontológicos de emergência. Agora, Olegário era respeitado, ficava na sinuca até alta madrugada e bebia cerveja com a resistência de um camelo. Os antigos amigos repetiam, num misto de admiração e reverência.
-Quem te viu e quem te vê...
FINAL
Um dia, quando Olegário estava na repartição, mascando um palito e segredando obscenidades aos colegas admirados, a recepcionista, que era casada e que estava de caso com Olegário, lhe passa do telefone.
-Telefone pra ti. Da Santa Casa.
“Empacotou”, foi seu primeiro pensamento, na carona de uma certa culpa por não visitar a mãe moribunda havia uns seis meses. Do outro lado da linha, o médico pusilânime anunciava:
-Tenho que te contar uma bomba. Mas toca pra cá pra ver com os próprios olhos!
Olegário teve um mal pressentimento e com o coração aos pinotes tomou o primeiro bonde. Chegando no salão abobadado, o médico estava eufórico..
-Tua mãe acordou esta manhã! E vou te dizer. A velha tá nova! Nova!
Imediatamente, Olegário empalideceu. A voz firme ganhou aquele velho e conhecido timbre fino e tísico:
-Como é possível?
Quando ele surgiu diante da mãe, Dona Euzébia, que parecia dez anos mais moça, o abraçou, reconhecendo naquela figura frágil o seu filhinho querido de sempre. Olegário sabia que não teria alternativa. Procurou na Santa Casa o primeiro telefone público e discou pausadamente. Quando a voz feminina atendeu do outro lado, ele, num fio de voz, quase que implorava:
-Volta pra mim, Maria Angélica...