Os olhos de É.
Ainda não são seis horas, É. anda pelas ruas com a leveza de uma felina e o sorriso de uma sensualidade natural quase selvagem. Os olhos são brilhantes como se todos os enigmas estivessem contidos em tudo o que eles puderam calar. Seu sorriso registra um mundo oculto cuja alegria era dividida em olhares de convites e silêncios.
É. caminha pelas ruas, por trás dos óculos escuros resiste um brilho, que beira lágrimas. Seu corpo ainda estremece das memórias sinestésicas, das fantasias de cada fragmento destas memórias registradas no seu corpo, então ela baixa a cabeça, deixa o ar escapar entre - dentes e segue pela calçada rememorando à tarde num motel barato.
Os músculos da pélvis registram a fadiga de uma tarde pródiga, da fúria das estocadas fundas, da cavalgada instintiva, quase demente; da volúpia do sexo oral que ela adora fazer em seu amante, das mordidas, de quando ele a chama de puta, ela fechava os olhos enquanto estava com ele na boca e ao abri-los sabia que ele estaria lhe encarando num pacto de cumplicidade que tornava a carícia plena, completa.
É. se guardava para aquelas tardes em que se dava inteira e se esgotava num tributo a própria sensualidade. Ela buscava sedenta a renovação da sua urgência de fêmea e se encontrava com sua essência.
É. gostava de provocar uma falsa violência, que sempre era percebida pela cumplicidade do seu amante, então ele batia nela e de acordo com as reações e intensidade avançavam neste jogo de provocação e domínio. A ação era sempre silenciosa e predominava o ofegar das respirações, quando a adrenalina e o esforço traziam uma renovada excitação
É. rolava pela cama simulando fuga, então seu amante a perseguia até encurralá-la em algum canto, cômodo e uma vez, até dentro do armário... Então ele atirava É. ao chão e a imobilizava com o peso do seu corpo; a ela cabia o papel sincero de resistir, que ela fazia bem; os corpos começavam a suar eles se encaravam sem qualquer palavra, então ele a colocava de bruços e por um instante ela parava de se debater.
É. aguardava esta posse como um vínculo e cultivava este ritual como uma reserva de si mesma. Ela fechava os olhos e segurava a respiração até recebê-lo todo, então empinava o quadril e mexia e começava a chorar baixinho, bem baixinho. O início deste choro era um sinal, um pedido que seu amante aguardava e se remetia com mais força para dentro dela, quanto mais forte, mais ela mexia e mais intenso lhe escapava o choro.
A força desta tensão crescia de tal forma que chegava a lhe faltar o ar, então nestes momentos ele lhe dava uma palmada vigorosa, que chegava a formigar e as lágrimas saltavam os olhos com uma intensidade menor apenas que o prazer que sentia. Ele entrava e saia sem resistência, senhor e escravo daquele corpo, apertava seus mamilos de uma forma enérgica quase brutal, avisando que estava pronto, então ela o afastava um pouco do seu corpo e recebia o seu gozo nas nádegas e mantinha-se empinada para que após o gozo ele a penetra-se novamente e fica-se ali até a ereção ceder. Quando seu membro enfim estava inerte ela se virava, o chamava de bruto e ia até o banheiro conferir os hematomas.
Agora estava a poucos metros de sua casa, se retirasse os óculos às lágrimas daquela tarde ainda seriam visíveis. Os músculos se ressentiam da volúpia e da febre com que se entregara. Tudo o que ficara daquela presença era uma noção de pertencer que só cabia na sua feminilidade e uma exaustão física que prostrava. Seu corpo ardia e doía carregado das memórias e do vigor do seu amante.
Chegou frente ao pequeno apartamento e revirou a bolsa procurando a chave, abriu a porta retirou os óculos e foi se olhar no espelho se sentiu linda, acariciou os seios sobre a roupa e viu a fêmea mais desejada do mundo.
Quando o marido chegou ela estava terminando de preparar o jantar, ele olhou para ela e disse que ela estava linda, ela sorriu seu sorriso indecifrável, se aproximou e lhe deu um beijo apaixonado com os olhos límpidos que sempre prometiam uma noite eterna.