Ana
A não ser por uma incrível necessidade de sair de casa, respirar, não havia nenhum motivo para que Anastácia (Ana, era assim que a chamavam), estivesse naquela praça, num domingo à tarde ensolarado do mês de abril.
No entanto, a solidão a estava tornando louca, desde quando Moacir a havia abandonado sem dizer sequer o porquê há exatos 4 anos, 3 meses e quatro dias, na véspera do reveillon de 2000.
Logo ela, que acreditava ter encontrado em Moacir a tranqüilidade de um amor maduro, aos 38 anos de idade, quando então já havia aceitado o fato de viver – e morrer – sozinha.
Neste período, havia voltado a beber compulsivamente e se tornara uma promíscua, entregando-se a qualquer homem que cruzasse seu caminho e, por acaso, se interessasse por seu corpo outonal decadente. Nestas ocasiões, fazia questão de serem as relações sexuais sem qualquer tipo de proteção, num desejo consciente de morrer.
Era uma insone que misturava Lexotan e Gardenal a qualquer bebida alcoólica que lhe estivesse disponível.
Certa noite, após ser surrada por um estranho que levara a seu apartamento e que ultimou por roubá-la após saciar sua lascívia, tentou o suicídio; colocou contra a sua cabeça o velho 38 do pai e apertou por 4 vezes o gatilho, quando constatou que a arma já não funcionava e então desistiu, por se achar incompetente demais até mesmo para morrer.
Era ela, na visão de seus colegas de repartição, uma pacata servidora pública, com lotação no setor de pessoal de uma autarquia pública. Passava o dia arquivando pastas e carimbando processos administrativos, num trabalho tão medíocre e burocrático, que sentia vergonha de se dizer portadora de um diploma de bacharel em direito.
Possuía vaga lembrança da mãe; recordava apenas da mulher de cabelos ruivos e sardas impressionantemente semelhantes às dela, que costumava gritar enlouquecida com a menina Anastácia por nada. Em verdade, sempre foi sabedora que a mãe nunca quis aquele rebento, tanto que fugiu com o vizinho quando ela tinha apenas 5 anos, deixando ao pai o fardo de criar aquela criaturinha infeliz e traumatizada.
Cresceu sem qualquer relação de afeto com o pai, um mecânico que trabalhava desmontando veículos roubados, e que se limitava a lhe pagar a escola e alimentação, sem nunca esconder, contudo, o rancor que sentia toda vez que olhava naquela imagem e semelhança de sua ex-mulher. Se ao menos lhe tivesse deixado um filho homem poderia ter alguém com quem ir ao jogo de futebol nos finais de semana... mas nem isso.
Para ela foi um alívio quando o pai morreu de um ataque cardíaco fulminante. Nestes tempos, já o havia flagrado várias vezes espiando-a pela fechadura, quando estava trocando de roupa ou tomando banho. Como já era de maior, continuou morando no pequeno apartamento de 2 quartos, único bem valioso deixado pelo pai, quitado que foi com sua morte pelo seguro do Sistema Financeiro da Habitação.
Nesta época, havia acabado de completar o supletivo do 2º grau e começou a trabalhar numa firma que prestava serviços ao governo federal. De início, foi colocada a fazer serviços gerais que iam desde limpar as salas até a fazer vezes de ascensorista.
Como era jovem e bonitinha, chamou a atenção de alguns funcionários da repartição, que viam nela promessa de sexo fácil e sem compromisso. E, com efeito, assim foi até que conheceu o senhor Aureliano, Superintendente da Autarquia, e que logo lhe fez sua amante. É bem verdade que Ana se apaixonou, mas nem por isso recusou quando “Ano” (era um trocadilho que faziam) a efetivou como agente administrativa.
Embora apaixonada, logo viu que Aureliano era um frouxo, que se borrava de medo da mulher. Acabou quando ele lhe disse que aceitara um cargo no Ministério em Brasília e, desse dia em diante, só o viu uma única vez, pela televisão, dando uma entrevista em que dizia baboseiras do tipo “temos que diminuir o déficit previdenciário causado pelo aumento da expectativa de vida dos brasileiros”.
Ana resolveu estudar direito à noite – porque assim poderia galgar posições na repartição (conhecia várias colegas que se tornaram Procuradoras assim). Após ser reprovada seguidamente em 5 vestibulares, conseguiu enfim ser aprovada na “Faculdade de Direito Adventista do Sétimo Dia”.
No entanto, a sorte não sorriu para Anastácia. Com efeito, quando concluiu a faculdade já havia a obrigatoriedade do concurso público e, ainda que tivesse tentado toda sorte de concursos, nunca logrou êxito e acabou por se resignar.
A vida de Ana era, assim, de um vazio e infelicidade infinitos; não tinha amigas, família... até que surgiu Moacir.
Ele era corretor de seguros, autônomo. Conheceram-se por acaso quando Moacir bateu em sua porta, oferecendo-lhe uma apólice contra incêndios. Convidou-o a entrar e, neste mesmo dia, ele se mudou para o apartamento dela. Parecia ser uma daquelas coisas que o destino lhe costumava aprontar, só que desta vez favoravelmente, afinal, Moacir era bem apessoado, simpático, e, principalmente, muito bom de cama.
Quando Moacir desapareceu sem explicação, primeiro chegou a pensar que ele tinha sofrido um acidente; foi à polícia, necrotério, etc. Só uma semana depois, quando recebeu uma lacônica ligação anônima, teve a certeza de que fora abandonada. Era alguém que se dizia conhecido de Moacir e, compadecido da angústia de Ana, asseverou que ele estava vivo, trabalhando em São Paulo e nada mais podia dizer.
Voltando àquela praça – onde Ana havia chegado após perambular pela cidade durante horas sem saber por que e para quê – era uma praça decadente do antigo centro urbano, nela havia uma estátua pichada, de alguém que devia ter sido importante algum dia; havia também um jardim mal cuidado, cuja grama já se havia transformado em matagal; havia alguns poucos bancos com a tintura descascada e foi num deles que Ana sentou, na tarde ensolarada de um domingo do mês de abril.
Ana observou os transeuntes que passavam pela praça: viu casais de namorados, viu pais felizes comprando algodão-doce e pipoca para os filhos e sentiu pena de si mesma.
Estava com a cabeça latejando de dor – efeito da garrafa de uísque que bebera sozinha em casa –; o corpo doído da noite anterior não dormida; tinha a inevitável sensação de que ia vomitar a qualquer momento. Não podia continuar vivendo daquele jeito. Alguém precisava ajudá-la, mas quem?
(final alternativo)
Voltando àquela praça – onde Ana havia chegado após perambular pela cidade durante horas sem saber por quê e para quê – era uma praça decadente do antigo centro urbano, nela havia uma estátua pichada, de alguém que devia ter sido importante algum dia; havia também um jardim mal cuidado, cuja grama já se havia transformado em matagal; havia alguns poucos bancos com a tintura descascada e foi num deles que Ana sentou, na tarde ensolarada de um domingo do mês de abril.
Ana observou os transeuntes que passavam pela praça: viu casais de namorados, viu pais felizes comprando algodão-doce e pipoca para os filhos e sentiu pena de si mesma.
Estava com a cabeça latejando de dor – efeito da garrafa de uísque que bebera sozinha em casa –; o corpo doído da noite anterior não dormida; tinha a inevitável sensação de que ia vomitar a qualquer momento. Não podia continuar vivendo daquele jeito.
Foi então que Ana mirou numa criança, parecia tão abandonada quanto ela – sentada num banco ao lado do seu – e Ana teve uma grande idéia: sim, um filho...
FIM - 2004