Laura e Cibele tinham muito a dizer uma para a outra
Cheguei naquela penitenciária em março de 2003, recém chegado do interior. Era um dia quente, de céu claro. Dia de visitas. Fui mandado direto para a sala de revistas. Eram três mesas, perfiladas ao comprido. Em cada mesa, dois agentes penitenciários revistavam as sacolas das visitas que iam entrando. Foi neste dia e neste momento que as conheci.
Não lembro quem era o agente que fazia par comigo na mesa de revista. Já fazem muitos anos isso, né. Mas da Laura e da Cibele eu nunca esqueci. Não há como esquecê-las. Eram ambas de estatura mediana, tipo 1,60m, Laura um pouco mais alta. Cibele era morena, usava óculos, possuía um aspecto sério, circunspecto, não carrancudo, mas tipo assim sorriso de Monalisa, contido, alegro ma non tropo. Era daquelas não antipática, mas não de muito riso, fechada, na dela, só dava confiança aos poucos. Meio desconfiada! Isso, meio desconfiada, sabem? Já Laura era toda sorriso. Não daqueles escrachado, tipo caricato e inconveniente, mas daqueles que parece que a pessoa nasceu sorrindo. Sempre com um aspecto sorridente, parece que ria com os olhos, com as mãos, ela toda. Era, confesso, o sorriso mais completo que já vira até então. Único. Exclusivo.
Mas esses eram aspectos secundários. Pormenores insignificantes. O que realmente chamou a minha atenção é que elas conversavam. Muito. Muito mesmo! Mas muuuiiiittttoooo meeeessssmmmmoooo!!!!! Uma com a outra, sem parar. Foi isso que fez eu nunca mais esquecê-las. Ficaram ali, das nove ao meio dia, uma de frente para a outra, na mesa, revistando as sacolas e conversando, sem parar.
Terminado a revista, pela manhã, saíram elas juntas para almoçar. Conversando, claro. Eu fui ao banheiro. Ao chegar no refeitório, lá estavam as duas, sentadas à mesa de frente uma para a outra. Comendo e... conversando! Eu, novo no lugar, comia quieto, trocando alguma palavra formal com um ou com outro. Nas penitenciárias, geralmente, os colegas não conversavam muito, quando não tinham intimidade. Ainda mais eu, que sou, por natureza, um cara tímido, fechado. Meio assim... Cibele! Isso mesmo, temperamento assim meio Cibele. Acredito que até isso fez com que eu não a esquecesse, também.
Elas terminaram de comer e saíram juntas do refeitório. Conversando. Sempre conversando. Muito. Conversando muito. Discretamente acompanhei a saída delas, de soslaio. “Como tem assunto essas duas” - pensei. Enquanto comia, comecei a fazer conjecturas sobre o que elas tanto conversavam. O que teriam tanto em comum? Terminei de almoçar e saí sozinho do refeitório. Lá estavam elas, em frente a entrada, de pé. Conversando.
Fui até a sala de revista. Eram 12h50min. Sentei enquanto esperava recomeçar o serviço, às 13h30min. Gozado, faz tanto tempo e eu ainda não esqueci os detalhes de horário. Por volta das 13h27min lá vinham elas. Conversando. Nunca esqueci aqueles “27 minutos”. Conferi eles no relógio que havia ganho do meu pai. Analógico. Me distraía conferindo a exata posição dos ponteiros sobre as marcações do relógio. Era um passatempo que eu tinha. Quase um tique. Elas chegaram. Passaram direto e se posicionaram ante a mesma mesa. Conversando. E assim permaneceram, até às 16 horas. Terminada a revista, lá se foram elas. Juntas. Conversando.
E assim sempre foi, durante todo o tempo que trabalhei naquela penitenciária. Chegavam juntas, sempre conversando. Fiquei conhecido delas. Primeiro da Laura, que era, por natureza, mais acessível. Tinha uma filharada! Vendia doces e potes de vidro artesanais. Era uma comerciante nata. Seus bombons eram bem legais, sortidos, bem feitos, saborosos. Até tenho ainda um pote de açúcar que ela me vendeu. Vejam só, tinha até me esquecido. O grandão, de bolacha, o Luis Ivã quebrou. Ah, o Luis Ivã era um gato preto que eu tinha. Já morreu. Faz anos. Mas eu não esqueci dele, também. Luis Ivã, de onde tirei esse nome para ele? Isso eu não lembro.
Já Cibele demorou mais para estabelecermos uma relação. Era desconfiada. Eu entendia ela. Um desconfiado sempre entende o outro. Aceita-o. Ela era mais ligada nas coisas sociais. Era meio líder, sabem? Organizava as outras para reivindicar as coisas. Admirava isso nela, pois eu era meio acomodado. Fiquei assim, meio de assessor dela. Embora acomodado, eu gostava do agito. E Cibele, do jeito dela, agitava. Era legal.
E o tempo foi passando e a vida seguindo. Depois de algum tempo, fui embora de lá. Fui trabalhar em outra penitenciária. Quando via algum colega de lá, que passava a trabalho, sempre perguntava por elas:
- E como vão aquelas duas, a Laura e a Cibele?
- Tão bem. Como conversam, né? Devem ter muito a dizer uma para a outra! Nunca vi igual, tchê!
Nem eu. E nunca me esqueci delas e do dia que as conheci. Aquela tarde ensolarada de março de 2003.
Depois me aposentei. Elas também. Quando ia na cidade em que ficava a penitenciária, rever alguns conhecidos, ou as encontrava ou perguntava por elas à alguém. Sei que elas foram juntas trabalhar nessa coisa de clubes de mães. É, a Laura tinha uma filharada! A Cibele tinha dois, se não me falha a memória. As duas, nos clubes de mães. Sempre juntas. Conversando. Muito. Muito mesmo. Todos diziam e reparavam nisso, pois era algo diferente.
Soube que, quando ficaram viúvas, mais no fim da vida, foram morar juntas. E conversar. Cibele morreu primeiro. Laura não durou mais que um ano depois, conforme soube. Deve ter sido a falta de ter com quem conversar, alguém íntimo com quem conversar, um amigo de fé, um marido, os pais, os filhos. Ah, os filhos. Esses a gente cria para o mundo. Não nos acompanham na velhice. Tem as coisas deles pra cuidar. Eu fiz assim com meu pai, ele morreu e eu não o via a um ano. Os gatos, para os velhos, são, muitas vezes, mais companhia que os filhos. Solidão. A velhice é solidão, eu também sei disso agora. Como soube o meu pai. Como soube a Laura, acho. Acho. Que sabemos nós da dor individual de cada ser humano? Só imaginamos! Sabemos da nossa.
- Ô seu Vitório, tá na hora de tomar banho.
Era a Andressa, a enfermeira do asilo.
- Ô guria, eu já te disse que não gosto que me chamem pelo nome, mas de “Seu Vitinho”.
Andressa riu e me pegou pelo braço. Me levou para tomar banho. De início eu ficava constrangido com isso. Essa moça me dar banho e eu nem conhecia ela, não era nada minha. Ainda continuo desconfiado, que nem a Cibele. Mas parece que a Andressa já está acostumada a ajudar velho a tomar banho, nem liga. Simpática a Andressa, me deixa à vontade. Acabei perdendo a inibição.
Enquanto a água quente escorre pelo meu corpo eu, sentado, pelado, observo a Andressa. De soslaio, que é uma característica que eu ainda não perdi. Loira, olho verde, seio farto, anca larga. Bah tchê, o meu tipo. Se fosse há uns trinta, não, há uns cinquenta anos atrás eu pegava essa loira debaixo desse chuveiro e... Bom, agora não dá mais. Vejam vocês, eu corria maratona! Uma vez saí no braço com o Alemão Bender, mais alto que eu, e dei uma surra nele. E todo mundo temia o Alemão Bender. Agora, até para tomar banho preciso de ajuda. E o Barroquinho já não acorda faz tempo. Ah, eu não tinha dito, mas chamo o meu sexo de Barroquinho. Nem me lembro o porque de eu chamar ele assim. Já esqueci. Que diferença faz, né? Não mudaria a situação.
- E aí seu Vitinho, tá bom o banho? Quer que eu lave a cabeça do senhor?
Boa moça a Andressa, não merece os pensamentos de um velho safado que nem eu. Podia ser minha filha. Se eu tivesse casado com a Nair, que era loira, assim que nem a Andressa, ela poderia ser minha filha. Teria puxado a sua possível mãe. Mas eu não casei coma Nair, que era apaixonada por mim. Por isso devo lembrar dos gatos, pois os tratava como filhos, né? Os gatos foram os meus filhos! Eu era um gatão! Velho safado, eu.
A Andressa começou a lavar meus cabelos. Eu me faço de fraco, que não consigo lavar a cabeça que dói o braço. Velho safado eu, né? Só faço isso para sentir a mão macia dela na minha cabeça. E o Barroquinho lá, dormindo. Mas isso me faz lembrar a minha mãe, que me lavava a cabeça desse jeito. Viram, não sou tão safado assim. Sinto saudade da minha mãe. Eu tinha 12 anos quando ela morreu. Ela era muito boa pra mim.
- Gostoso, né Seu Vitinho. Vamos enxaguar a careca e terminar o banho?
Andressa está cansada. Trabalha muito. Coitada. Sei que ela fala comigo feito criança, com aquele jeito carinhoso mas formal, com que igualmente trata os outros velhos do asilo. Quando a gente é criança também fazem assim conosco, só que a gente não entende as coisas. A gente fica velho mas a cabeça é de homem, entende as coisas. Mas tudo bem, antes uma atenção formal educada e carinhosa que o abandono. É a vida.
Ela me leva até o quarto. Deito. A luz fica acesa. Gosto de ouvir um pouco o meu CD da Bíblia antes de dormir, enquanto acaricio a cabeça do Sebastião, aconchegado ao meu lado. Calma, não é o que vocês estão achando. Sou um velho safado, no fim da vida, mas não gay. Sebastião é o nome do meu gato, talvez o último “filho” que eu vou ter nessa vida. Também, aos 87 a gente já está nos acréscimos, apenas esperando o apito final do juiz. Quem sabe uma prorrogação? Sei lá! Deus é que sabe.
O Sebastião não fala comigo. Não é de muita conversa. Que nem a Cibele. O CD “fala” mas, egoísta, não responde se eu perguntar algo. Ah, lembrei de novo da Laura e da Cibele. Na verdade nunca tive um colega-amigo assim como a Cibele tinha a Laura e a Laura tinha a Cibele. Um amigo que conversasse comigo bastante. Eu sempre fui um desconfiado mais fechado do que a Cibele era. Acho que é por isso que lembrei delas hoje. A solidão. A solidão de sempre. Agora, ampliada pela idade. Repleta de belas enfermeiras as quais não ofereço mais perigo, não mais seduzo, que me tratam como criança. É a vida.
Ciúme. Isso, eu sentia ciúme delas. Da amizade delas. Foram necessários 60 anos para eu ver isso. Queria uma amizade como aquela. Conversar. Muito. Muito mesmo! Ciúme da Cibele e da Laura. Não inveja, ciúme, um ciúme positivo. Queria ter algo que elas tinham, que elas tiveram.
Acabou o CD. Estou cansado. O Sebastião já apagou, bichano preguiçoso. A Laura e a Cibele tinham muito a dizer uma para outra. A dizer e a dar. Muita amizade. Que ciúme.
Com licença gente. Boa noite.