ENCOMENDANDO AS ALMAS
ENCOMENDANDO AS ALMAS
Nascida e criada em Belo Horizonte até seus doze anos, Dina nada sabia dos usos e costumes do interior, mas de repente numa dessas voltas que a vida dá, ela se viu morando na remota Vila da Serra Quebrada e se assustava com tudo: um galo bravo, um cavalo desembestado ou um bichinho peludo. Acostumada aos confortos da capital, aquela vida rural era um susto atrás do outro, mas o maior susto de todos, ela levou na primeira sexta feira da quaresma que passou por lá, porque acordou depois da meia noite ouvindo um canto fúnebre, tipo canto gregoriano, marcado por um ruído seco.
Ela ouviu por algum tempo aquela música estranha que no primeiro verso dizia: essa é a premera incelença, pra livrá as arma do inferno e no final do verso, vozes de homens e mulheres uivavam aiuuuuuuuu e logo em seguida aquele ruído seco, tátátátátá, ela se levantou gritando pela mãe e pelo pai.
O pai logo explicou que eram os encomendadores de almas, que durante a quaresma saiam todas as sextas feiras, cantando aquela música lúgubre para afugentar os demônios e ajudar as almas desgarradas a encontrarem o caminho da luz e que o barulho seco era o som das matracas.
Disse que a tradição mandava manter as casas fechadas, porque atrás dos encomendadores vinham as almas perdidas e no final os demônios tentando pega-las e se alguma porta estivesse aberta elas poderiam entrar para se esconder, mas com a música e as cruzes os encomendadores se protegiam.
Dina ouvia apavorada as explicações do pai, mas curiosa como era perguntou como eles se vestiam e o pai pacientemente disse: filha, almas são etéreas e transparentes e os demônios são negros e nenhum deles precisa de roupas, mas os encomendadores se enrolam em lençóis brancos e levam cruzes.
Andam em grupos compactos e na frente e atrás vão quatro homens agitando as matracas de madeira, para com aquele ruído seco afastar os demônios e mostrar as almas desgarradas o caminho certo para a luz e a paz; a mãe terminou o assunto dizendo:vamos rezar a oração do Credo e depois protegidos por Deus, vamos voltar para a cama e dormir.
Dina voltou para sua cama, cobriu a cabeça com os lençóis, mas só conseguiu voltar a dormir quando o galo do vizinho cantou anunciando o alvorecer, porque com a luz do dia chegando ela se sentia garantida contra aquelas coisas amedrontadoras, contadas por seu pai.
No final da quaresma Dina estava muito cansada, porque todas as sextas feiras ela acordava com aquele canto sombrio dos encomendadores de almas e o som rascante das matracas e não conseguia mais dormir, com medo de sua mãe esquecer alguma porta aberta e almas ou demônios entrarem para agarrá-la. Cruz Credo.
Maria Aparecida Felicori{Vó Fia}
Texto registrado no EDA