A Espera

A espera

Deixava a porta do apartamento entreaberta ao dia, à espera de que ela retornasse. À noite, antes de dormir, dava apenas uma volta na fechadura para não dificultar a chegada dela. E em nenhum desses anos houve um instante sequer em que ele a amasse menos do que a amou. Estava à espera dela, como o imóvel em que moraram. Os móveis, embora a empregada diariamente fizesse a limpeza, tinham neles ainda a poeira deixada pelo vento que levantou a partida dela. E por mais empenho que a moça tivesse em lustrá-la, a mobília conservava aquele pó como uma fina camada de pele. As paredes brancas ganharam uma coloração amarelada e pequenas rachaduras cicatrizavam o teto. Na sala, o sofá fora coberto por um lençol azul; e, na mesa de centro, o mesmo exemplar de a Odisséia, comprado na derradeira viagem do casal. A cortina fechada dava a um canto da sala um ar sombrio; a outro canto, porém, a luz imanente de uma janela do corredor, à certa hora do dia, iluminava o quadro na parede com a imagem desfocada da foto de casamento. Quanto tempo foram casados? Há quanto o casamento? Quarenta anos, tão frescos à memória, completados recentemente sem o baile verde. No quarto, a cama arrumada sempre da mesma forma, como há cinco anos. As suas roupas e as dela dobradas ao cheiro de naftalina no guarda-roupa. Os dois criados mudos, um em cada flanco da cama e, sobre eles, abajus. Não havia janelas no quarto, o que imprimia sobre o ambiente um tom obscuro, extinguido às vezes quando a luz do corredor invadia-o e alcançava os pés da cama.

Comprara um aparelho de tevê com função vídeo-cassete. Deixava a televisão ligada, ao dia, gravando a programação que lhe interessava e, à noite, juntava as fitas — sempre numeradas, datadas e nomeadas —, tomando o cuidado de não de não assistir ao que no dia anterior havia gravado; dessa forma, sempre existia algo por assistir. No entanto, passado algum tempo, veio-lhe certa irritação por saber que aquilo o confortava, e nada tinha com a sua espera. Ao longo dos anos, tinha procurado na companhia de alguns amigos, no jogo de damas na praça, nas visitas anunciadas dos filhos e em outras distrações, uma forma de esperá-la. Mas o que é o conforto se não os músculos e a vontade anestesiada? Tornou-se-lhe repugnante aquela sensação que, sorrateiramente, esgueirava-se sobre os seus dias e consumia-o — tinha na boca o gosto lamacento daquela resignação do corpo e das coisas a empurrar-lhe para dentro do pântano. Então, da mesma forma que abandonou o consolo em distrair-se frente à televisão, abandonou os amigos, o jogo de damas e as visitas dos filhos, ora distanciando-se de uns, ora colocando empecilhos à chegada de outros. Sabia que aquela espera era só dele e compartilhá-la significava esmigalhá-la, transformá-la em pedaços jamais recuperados e refeitos. Assim, foi assimilando-a, deglutindo-a pouco a pouco, pacientemente, como um réptil o seu alimento. Agora, nem a ação mordaz do tempo e das coisas poderia atingi-la.

Seu velho paletó, guardado em um baú no quarto, trazia-lhe quantas memórias? Todas elas desfibradas ao sabor da imagem daquele tecido impregnado pelas reminiscências de uma vida: o casamento, os aniversários, o batismo dos netos... Havia, porém, sobre a vestimenta já uma espessa camada de poeira, e um bolor irrespirável subia às narinas apenas de olhá-lo. As traças haviam feito alguns buracos no pano. No entanto, o paletó era conservado ali naquele móvel, o único cuidado (ou compromisso) era mantê-lo lá, junto ao vestido de casamento dela, que se mantinha intacto. Quando abria o baú e recaíam-lhe os olhos sobre o vestido — como se o visse da vez primeira na igreja — a forte certeza de que ela retornaria inundava-o. Tão brandas ficavam as noites e os dias tormentosos sem a presença dela, que os ombros curvados levantavam-se sobre o tecido da camisa. E toda a sua pungente dor cabia na palma da mão e não pesava mais do que o sopro de vida de um recém nascido. Uma doce lágrima, então, percorria as linhas fixas que o tempo marcara-lhe no rosto e era absorvida nos lábios trêmulos. Dessa forma, aprendeu a esperá-la, dia após dia, ano após ano.

As horas de almoço e janta eram feitas no vazio e solidão da mesa, com o triste fantasma dela sentado à cadeira na outra ponta da mesa — sabia que a hora mais improvável de ela retornar era aquela. Ela conservara o hábito cerimonial de fazer as suas refeições em hora marcada, e ele sabia que, naquele instante, ela estava à mesa. Era o único momento em que a presença dela consubstanciava-se e, ao mesmo tempo, diluía-se no fantasma sentado à frente dele. Horas cinzentas. Os talheres tilintando no fundo do prato e a comida, paulatinamente, mastigada, retirando-se dos alimentos apenas o necessário para manter-se em pé, fazendo o corpo resistir, também, àquela espera. Após as refeições, acendia um cigarro junto ao parapeito da janela do corredor. Os cotovelos recostados, o olhar fixo em um ponto e em lugar algum, o cigarro seguro entre os dedos, e as cinzas a se perderem dissolvidas no vento.

A empregada chegava pela manhã, depois das nove. Preparava o almoço, limpava a poeira da mobília e arrumava a cama. À tarde, retornava e preparava o jantar, que era servido pouco antes da moça ir embora. Partia-lhe o coração ver aquele pobre senhor naquele estado deplorável, de solidão e tristeza. Em quase todo o tempo em que ela se encontrava no apartamento, ele metia-se no quarto, deitado com a cabeça voltada para o baú que ficava ao pé da cama. Ele precisa aceitar, pensava a moça. Faz muitos anos, assim ele definha e só Deus sabe... Se ela escolheu deixá-lo deve ter sido por motivo muito forte. Ou sei lá o quê? Nunca se sabe o verdadeiro motivo. Mas o certo é que um senhor de sessenta anos não podia se dar ao luxo de querer levar uma vida qual aquela se quisesse viver mais alguns anos. No entanto, mal a moça saía, ele já se levantava, preparava um café e ia sentar-se à sala com a xícara em mãos. Recostava-a sobre a mesa de centro e abria uma página do livro, “Ulisses retorna a Ítaca...”. O café, solvido a pequenos goles demorados, não esfriava, sempre quente.

Talvez sua espera durasse mil anos: estava disposto a enfrentá-la com cem vidas. Esperá-la já não era apenas uma vontade do espírito. O corpo também acabou por entender essa necessidade e fazer dessa espera o alimento dela própria, como também já antes o espírito fizera. Não havia nele mais o medo de ela não poder chegar, nem o de também ele não mais poder esperar. Sua espera estava viva dentro dele. Havia incorporado-a de todo. Era ele já a própria espera; por isso, era completa e verdadeira: intangível.

Ao chegar pela manhã, a empregada encontrou a porta entreaberta, como de costume. Empurrou-a com uma das mãos e se dirigiu ao quarto onde ele estaria. Seus passos ressoavam no assoalho em direção ao quarto, onde ele sempre se encontrava. A luz da janela do corredor invadia a casa iluminando a foto de casamento na parede da sala e penetrava a fresta da porta do quarto, alcançando o pé da cama. A moça auscultou pela brecha da porta tentando achá-lo e evitar ter de precisar entrar no quarto — ninguém. Chegou à porta, segurou a maçaneta e a empurrou o suficiente para colocar a cabeça pela fresta. A luz da janela do corredor, nesse instante, alastrou-se por todo o quarto, destacando do lençol da cama um corpo deitado, trajando aquele paletó roto e velho, e, a seu lado, o vestido de casamento da esposa. A moça espantou-se. Girou sobre os calcanhares e já pedia por socorro. Retornou, porém. “Seu Pedro Lopes”, murmurou. “Seu Pedro, o senhor está bem?” Entrou no quarto, acendeu a luz e foi de encontro a ele. “Seu Pedro, acorda”. Segurou a mão dele e sentiu-se atravessada pela gélida lâmina da morte. Gritou.

O corpo foi velado e enterrado no dia seguinte, sem a presença dela. O filho mais velho retornou ao apartamento dias depois para recolher alguns pertences de valor do pai. Ao sair, fechou a porta, dando apenas uma volta na fechadura, a segunda foi truncada. Se forçasse, quebraria a chave. À noite, uma senhora subiu até o andar daquele apartamento. Retirou da bolsa uma chave, colocou-a na fechadura e completou a volta, que então faltava.

antônimo
Enviado por antônimo em 25/02/2009
Reeditado em 09/08/2011
Código do texto: T1457182
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