Por Razões Sentimentais (Ele)

Subiu as escadas do metrô completamente fora de si. Caminhou pela cidade e nada viu. Subiu a escadaria do seu prédio, abriu a porta do apartamento, entrou e deu de cara com a sala. Ela estava ali. Envolvida por flores, morta.

 

Sentou na poltrona, ao lado do caixão, acendeu um cigarro, tragou-o profundamente, olhou para ela, passou a mão sobre seus próprios cabelos, olhou para o chão e criou coragem para dizer tudo que queria ter-lhe dito antes:

 

- Quando nos casamos, eu entendi que era para sempre, mas sempre é tempo demais para quem vive. Eu nunca entendi o que se passava aí dentro de você. E você... Jamais pôde compreender o que se passou aqui dentro de mim. Nunca me viu sorrir, nunca me viu chorar, mas isto não implica dizer que nunca tive nada dentro de mim. Eu apenas não me animo com coisas fúteis e nem me abalo com coisas simples demais. Poderia chorar por você não estar aqui. Mas chorar por que se, na verdade, você sempre vai estar? Você talvez tenha passado por essa vida como uma vagabunda que passa pela rua esperando o primeiro para quem possa dar. Mas dar o que? O seu corpo? Esse que não é mais seu e que agora apodrece? Você nunca teve nada para dar. E poderia ter me poupado desses dias. Eu ando pelas ruas e agora já não mais sinto o chão. Eu ando pelas ruas e só vejo as lembranças dos dias que vivemos relativamente felizes dentro deste apartamento. Não reparo as lojas, as pessoas, os carros, os ônibus, as árvores e nem mesmo se o céu está nublado ou se está limpo. Acho um saco ter que te dizer isso, mas eu não amava mais você. O amor que eu sentia sucumbiu ao passar dos dias. Estava morto, assim mesmo como você está agora, deitado num caixão, esperando para ser enterrado junto com um de nós. Eu nunca entendi quando você dizia que eu era complexo. “Complexo demais para o seu gosto!” Mas agora eu entendo. Eu sou mesmo complexo para muita gente. Por que complexo é tudo aquilo que a gente não domina, que a gente não entende. Eu gostaria de pintar o seu retrato sobre seu túmulo. Para que você não se tornasse apenas mais uma no cemitério sendo devorada pelos vermes. Ontem eu retirei todas as suas roupas do armário. Suas jóias, seus vestidos e encontrei uma caixa com escritos. Eu guardei esta carta escrita com a sua letra para o Carlos:

 

“Querido Carlos;

 

Fiquei muito feliz de ter te reencontrado. É uma pena que eu esteja casada com o traste do Leonardo. Creio que tenha confundido realização sexual com amor, na verdade. Mas amor mesmo eu sempre tive por você. E hoje eu tenho certeza disso, de verdade! Vi nos seus olhos que ainda sentes algo por mim, apesar de também já ter casado. E é exatamente por isso que te escrevo esta carta. Estou disposta a largar o Leonardo e fugir para qualquer parte do mundo, desde que você esteja ao meu lado.

 

Peço que não sintas medo em admitir que também não ama a sua esposa, que ainda resta um pouco daquele amor que você sentia por mim, pois, em mim, amor por ti, também há. Procuro ocultar isto em meu relacionamento por enquanto e imagino que também deves fazer o mesmo no teu com a tua esposa. Trato o Leonardo da melhor maneira possível para que ele não perceba nada de diferente em mim, pois desde que te reencontrei, senti que tudo dentro de mim ficou revirado. Você precisa entender que equívocos acontecem e casar-me com ele foi o pior de todos os equívocos que cometi na vida. Tudo que sentia por ele, desfez-se como pó entre os dedos. Nossa relação sexual é, para mim, hoje, apenas como cumprir uma obrigação e imagino que isto é exatamente o que deves sentir também com a tua esposa.

 

Eu já não tenho desejo, interesse, nem sinto qualquer tipo de prazer na companhia do meu marido. Interessa-me muito viver de outro modo. Com alguém por quem eu tenha, pelo menos, um segundo de prazer, felicidade e de muitas outras alegrias, quem sabe! Tento, em breve, estar com uma nova vida e, se permitires, construirei nova vida ao seu lado. Vou te esperar amanhã no café colonial. Se quiseres, posso repetir tudo que digo nesta carta. Posso falar de todo amor que ainda tenho por ti olhando em seus olhos.

 

Aguardo sua resposta confirmando o nosso encontro para, quem sabe, planejarmos nosso futuro.

 

Beijos eternos.

Sempre sua...

Glória!”

 

Eu jamais poderia imaginar que você me tinha tanto apreço! Tanto que até desconheço essa Glória cheia de vida. Morrer era mesmo o melhor para você, sua vadia! O melhor para acabar com essa palhaçada! Tudo bem, nós não tínhamos diálogo. Nunca tivemos! Ou éramos mudos ou éramos berros. Mas nunca desconfiei que houvesse ainda alguma coisa entre você e o Carlos. Se desconfiasse disso antes... É inútil que você morra e me deixe aqui com tantas questões... Com tantos calos vivos... É inútil você querer que eu pense sobre isso que diz na carta e sobre outras coisas também. Eu nunca refleti muito sobre nada. Nunca fiz muitas questões. Você foi, para mim, como uma droga que apenas me tirou do meu estado normal por alguns instantes. Eu olho para você e só consigo me lembrar do quanto que o mundo é fútil e egocêntrico: Seus vestidos, suas jóias, seu carro, sua casa, seu marido, seu sexo, seu amor, sua felicidade, nada mais que isto! E agora que morreu o que você quer? Ser aplaudida? Eu aplaudo! Brava! Brava a sua corrida! Pena que ela só te levou à caminho da cova. E o que você deixou aqui? O que você deixou?

 

Eu não chorei quando te vi jogada na banheira. Não chorei quando te vi ensanguentada. Não chorei e não choraria por nada! Você estava exatamente como qualquer um pode estar algum dia. Vai para onde todos vão em algum momento. E se você decidisse voltar agora, eu mesmo te levaria ao seu túmulo de volta. Pelo simples motivo de que você viveu como uma morta. Sinto que este talvez seja o único momento em que você me escutou nessa vida.

 

Eu lamento que no seu velório não haja convidados, não haja lágrimas ou sequer um tradicional cafezinho. Lamento que eu seja o único a te aplaudir. Eu sei que em algum momento você deve ter desejado a minha morte. Quando te tranquei em casa e não deixei você sair bêbada e nua pela rua, quando você gritou e eu sequer quis te ouvir, quando nosso filho morreu e eu não disse nada. Você sempre foi uma grande estúpida. Nunca entendeu absolutamente nada, embora fingisse entender de qualquer assunto. Você sempre foi com a multidão e isso não lhe rendeu absolutamente nada. Você sequer tinha uma opinião! Apenas repetia como um disco arranhado o que os outros diziam ser verdade. Mas onde esteve a sua verdade? Não desenvolveu seu lado questionante? A sua verdade era exatamente esta: Você não morreu, já estava morta! Escondeu-se da sua própria verdade. E é exatamente isto que vou repetir para a polícia: Ela havia se escondido e já estava morta! Esfaqueou-se a vida inteira. Já estava morta... Já estava morta!

 

Hoje, mandei retirar todos móveis desse apartamento. Doei tudo aos pobres. A quem acha que precisa de uma geladeira para ser feliz, de um carro para se locomover, de uma cama para dormir tranquilamente, de uma TV para se informar, de um sofá para relaxar. Eu só pedi para deixarem mesmo esta poltrona em que estou sentado, pois é aqui que vou sentar-me para conversar com você, todos os dias da minha vida, até que estes se acabem.

 

Daqui a duas horas virá um rabecão para te buscar. Eu não quero mais sentir o seu cheiro podre. Cansei. Estou sentindo esse cheiro desde o momento em que vi seus pulsos cortados na banheira. Por que você resolveu se matar? Você não teve a hombridade de me dizer que nunca sentiu nada por mim... Que não sentia mais prazer no sexo... Que me odiou a vida inteira! Logo eu, que te dei tanta liberdade! Não ficaria incomodado se você me dissesse do Carlos... Nunca fui o teu dono. Nunca fui dono de nada nesse mundo. Houve, entre nós, apenas um encontro. Eu precisava da sua companhia e você da minha... Eu tentava te dar... Mas você renegava a tudo isso! Simplesmente por pensar somente em si. Você foi tão egocêntrica que sequer me disse tchau. Sequer disse que não queria mais viver como antes. Sequer deixou-me dizer o que penso sobre a morte. Eu simplesmente cheguei, te encontrei na banheira, e vi-me só.

 

Essa sua forma pouco criativa de dizer “não” à vida demonstra somente o quão ignorante você era. Praticamente uma iletrada na escola da vida! Essas paredes, nosso quarto, essa sala, agora jorram sangue e lágrimas desperdiçadas e sem qualquer necessidade. Não vou mudar-me daqui. Vou chamar uma vagabunda diferente a cada semana e fazer amor com elas... Fazer amor... Sim, com vagabundas... Em cada canto deste apartamento! Para não me sentir sozinho. Vou dar a elas o que tentei te dar em vida e você não quis. O amor é igual para todos, independente de quem o dá e de quem o recebe. O amor que você procurou no Carlos sempre esteve em mim... Sempre esteve aqui, nesse lugar. Você é que não quis cultivar. Eu não ia fazer isso, pois você não merece, mas vou colocar aquela música que você gostava, lembra? Ainda restaram nossos discos e a vitrola:


DISCO NA VITROLA


Gostaria de ter dançado com você esta ultima música. Posso levantá-la daí? Tirá-la do meio dessas flores para o nosso ultimo baile? (abraçando-a) Eu amaria tê-la de volta novamente. (a campainha toca) Amaria ver o seu sorriso ainda que nos braços de outro homem, mas você quis assim! Disse esse não... Por quê? Não podia ter suportado nem um pouco mais de si, da vida, dos problemas, do mundo? (campainha toca novamente) Chegaram os seus súditos, vão levá-la como levavam as rainhas antigamente: Em seus braços. E a terra te abraçará pela ultima vez e te dará o beijo suave do repouso incansável, enquanto eu ficarei aqui exatamente no mesmo lugar. (campainha novamente) Preciso abrir a porta... Com licença...

 

- Senhor Leonardo Gonçalves?

- Sim, sou eu mesmo!

- Nós somos da agência funerária... Viemos...

- Eu sei... Vieram buscá-la! Podem entrar. Esperem... Uma rainha não pode ser enterrada sem os seus pertences! Tomem: São suas jóias, seu ouro! Foi a única coisa que ela deixou mesmo em vida: Ouro de tolo! Por favor, peço para que seguramente façam com que, com as jóias, ela seja enterrada. Eu pago o que for preciso.

- Mas senhor...

- Não... Eu pago por isso... Eu pago!

- Está bem, ela será enterrada com suas jóias! Com licença...

- Muito obrigado! Adeus, rainha louca! Adeus sua vadia, miserável desmiolada! Vá para o diabo que te carregue! Vê se não desiste agora de ser enterrada! Amanhã esteja aqui para conversarmos! Será um prazer dizer o quanto você me fez mal. O quando você é desgraçada! Adeus... Adeus... Rainha das trevas... Até breve! Até breve!

 

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Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 21/02/2009
Reeditado em 02/10/2024
Código do texto: T1450336
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