(TRANS)VIADÃO

(TRANS)VIADÃO

Quem sou eu para discutir ortografia, gramática ou literatura com o Professor Nicola, que tem título de doutor sobre a língua pátria? É ele que, às vezes, por gentileza, faz revisão de meus textos. Mas, naquele dia, precisei lhe chamar a atenção. Cheguei a lhe mostrar o dicionário. Ele não deu o braço a torcer. Insistiu: - não é veado. É viado mesmo!

- Mas, professor, não tem essa palavra no Aurélio. E o corretor automático do Word, confirma.

- Bah! Esses gramáticos ignorantes! Não sabem nada. Não estudam a origem das palavras.

- E qual é a origem desta?

- Veado, é aquele bicho que corre no mato. Viado vem de transviado, portanto, quando o termo se refere a homossexual masculino, o correto é a grafia viado! Entendeu?

Para falar a verdade, entendi o argumento, mesmo duvidando. Como sou pessoa educada, concordei com ele.

Aí ele voltou ao passado. - E por falar em viado, você se lembra do Conchita? Êta viado macho aquele!

Claro que me lembrava. Morríamos de medo daquele homenzarrão de um metro e noventa de altura, por um metro e meio de largura. Era o próprio Golias. Conta a lenda que, sozinho, bateu em toda uma escola de samba. Era neguinho que voava por tudo quanto era lado. Só porque mexeram com ele, que estava fantasiado de odalisca.

Quando o conhecemos, éramos pouco mais que adolescentes e ele já viadão adulto. A bem da verdade, nunca se engraçou comigo, nem com o professor. Em compensação, era apaixonado por outro amigo nosso, o Tomás, apelidado de Alain Delon dos pobres, que fugia dele, como o Diabo foge da cruz.

Mas o Conchita não era diferente apenas quanto à opção sexual. Era também comunista. Daqueles de carteirinha. E não deu outra. Foi em cana logo no primeiro de abril, quando a gloriosa redentora derrubou os comedores de criancinhas e assumiu as rédeas do poder. E, pior, estava armado nesse dia. Aliás, ele sempre andava com um trinta e oito na cintura. Explicava: - tenho que andar com esse berro. Ninguém desarmado vai ter coragem de me encarar. Se alguém me provocar, é porque está armado. Cuido muito da minha saúde.

Os homens de verde não tiveram muito trabalho. Eram uns trinta, todos de metralhadora. Estouraram as portas da casa e o Conchita, sem qualquer reação, se entregou. Sequer revidou as pancadas. Realmente, cuidava da saúde e não era burro.

Um mês depois, estava solto. Despertou a nossa curiosidade. – Como foi? Como conseguiu sair? Houve julgamento? Foi absolvido?

Ele apenas ria. Risadão gostoso.

Depois ficamos sabendo, através de seu advogado. Saiu logo por três motivos. Primeiro: tinha dinheiro para negociar. Mudam-se as regras, mas não mudam os costumes. Suborno e propina sempre foram meios convincentes. Segundo: pediu para entrar em contato com um alto oficial da aeronáutica que, segundo as más línguas, freqüentava com ele a mesma casa de banhos e terceiro, por incrível que pareça, o comunistão também era umbandista, freqüentando o terreiro do Orô, que era cavalo de Exu, muito respeitado. Tinha entre seus clientes juízes, promotores e muitos militares. Reuniu os seus fiéis e fez sessão especial. Dentre estes estava um general de exército, que tinha a cabeça feita no terreiro. Consta que nessa noite baixaram entidades de todos os panteões. Segundo a história, foi essa a força decisiva para a libertação do Conchita.

E o tempo passou... o Conchita sequer foi fichado. Todas as informações a seu respeito nos órgãos oficiais foram apagadas. E ele, sem deixar a viadagem, virou capitalista de primeira. Defensor do Estado de exceção. Como disse, não era burro. Queria mais era rosetar.

E chegou o famoso AI-5. Aquele que coroou a libertadora. Suprimiu todos os direitos do cidadão. Nada mais de habeas-corpus e outras bobagens que travam a revolução. A segurança da nação está em jogo. Os comunistas cada vez mais se organizando. Surgiu, até mesmo, um esquadrão da morte, cujos membros jamais responderiam por seus atos de heroísmo. Até mesmo uma lei foi promulgada e apelidada de “Lei Fleury”, em homenagem a um desses heróis revolucionários, que exterminou muitos daqueles que não concordavam com as novas regras salvadoras da pátria. E foi nessa época que o Tomás foi preso. Coitado... estava distribuindo panfletos na universidade, denunciando a prisão arbitrária de professores, quando foi cercado pelo DOPS.

***

O professor Nicola e eu estávamos tomando um tinto em nossa cantina predileta e mordiscando uma pizza derretendo, quando entrou o Conchita gritando: - Eu sou comunista! Quero ser preso! Se tiver alguém aí do DOPS, do SNI ou das forças armadas, quero me entregar. Confesso tudo! Só tenho uma exigência: quero ficar na cela junto com o Tomás!

antonio luiz fontela
Enviado por antonio luiz fontela em 19/02/2009
Código do texto: T1447408