O Caveirão Potemkin
Quando uma desgraça acontece, as pessoas dizem que nunca sabem como tudo começou. Dizem ter sido uma fatalidade. Bem, acredito na parte que fala da fatalidade, no sentido de ser decisivo, uma tragédia anunciada, pré-destinada.
Quando um grupo de pessoas é excluído do resto da sociedade e deixado à marginalidade geração após geração, ele acaba vivendo sobre suas próprias regras, criando sua própria normalidade, seu próprio cotidiano suportável. Enquanto o resto da sociedade não for incomodada pelos excluídos e vice-versa, todos se aceitam. Mas é só quando um grupo ameaça o outro é que vem alguém dizer que tem alguma coisa errada. Só que aí já é tarde. As instituições públicas, os políticos e os cidadãos de bem já estão corrompidos, a imprensa já trata os conflitos sociais como um show, mais um entretenimento circense. E é aí que as pessoas, todas as pessoas, de todas as classes, vão dizer que não sabem como tudo começou, quando acontece uma desgraça.
Quando eu voltava da aula de capoeira àquele dia, cheguei a pensar a mesma coisa: não sabia como tudo tinha começado. Antes, só me lembro que o dia estava quente, o sol batia à pino. Os moradores subiam e desciam moderadamente tranqüilos a escadaria que dava acesso à parte mais alta da favela, onde morava a maioria dos traficantes. Alguns crentes estavam terminando a limpeza da igreja que fora construída aos pés da escadaria.
De repente, tiros vindos de todas as direções começaram a rasgar o céu. As pessoas entraram em pânico. Um pânico naturalizado, mais próximo a um desconforto geral momentâneo: a polícia estava subindo, e os traficantes revidavam à afronta.
O blindado apelidado de Caveirão acabara de derrubar a barricada próxima à igreja. As pessoas começaram a descer a escadaria, na esperança de se abrigarem no templo. Um grupo de policiais já havia se posicionado atrás de alguns muros e disparavam para o topo do morro. As rajadas vindas lá de cima não paravam por um só instante. Uma criança fora ferida no meio da escadaria. Os policiais disseram depois que o tiro viera dos bandidos. Alguns moradores afirmavam que viera de um policial. Só sei que uma senhora teve a coragem de segurar a criança no colo e pedir ajuda. Mas o tiroteio não parava. Ela pranteava para que parassem, mas não pararia. Todos sabiam que isso nunca iria parar, por mais que crianças morressem e que senhoras pranteassem. Avisaram para a senhora sair da linha de tiro, mas ela tinha esperanças. Tarde demais. Logo ela foi também atingida e tombou para trás, com a criança ainda em seu colo. Alguns moradores choravam de medo, outros, de raiva.
Aquilo parecia uma zona de guerra, dessas que a gente assiste só nos filmes. Mas não era cinema, era real. É real. Está acontecendo o tempo todo e só tende a piorar. A visão daquele blindado de guerra, daquele Caveirão na minha frente era como se fosse um anunciador da morte, um anunciador da fatalidade, de toda uma incompetência de toda a parte da sociedade. Por que o dinheiro que é usado para se construir esses blindados de guerra não são usados para se construir uma escola, ou casas populares? Por que os cidadãos, que são os que pagam o Caveirão, parecem não se importar com o mau uso que fazem de seus impostos, de seu dinheiro? Enquanto as pessoas se omitirem, sempre haverá espaço para que as pessoas más decidam em nosso lugar.
Mas naquele momento, durante aqueles minutos ensurdecedores, as pessoas só decidiam por salvar suas vidas. Eu olhava para a igreja e via os moradores se amontoarem dentro do templo, implorando para que um Deus esquecido agora se lembrasse deles. Olhei para o alto da escadaria para ver quantas pessoas ainda não tinham conseguido descer, e, quando a gente pensa que só vê isso nos filmes, deparei com uma jovem, talvez fosse uma adolescente, em desespero, paralisada, sem saber se seria melhor tentar descer a escadaria ou voltar para cima da favela. Ela estava empurrando seu bebê em um carrinho.
Então, eu não ouvi mais nada. Nem tiros, nem gritos, nem comandos militares. Eu só ouvia o silêncio. Uma cena muda. Acho que meu cérebro tentou consolar-me frente ao horror porque eu comecei a mentalizar uma sinfonia que ouvira ontem na aula de música clássica da comunidade. Isso aconteceu no exato momento em que aquela jovem mãe foi atingida no peito por um tiro.
Ela foi caindo lentamente, tentando, em seus últimos suspiros, proteger seu bebê. Mas ela tomba na beira da escadaria. Seu braço cai em seguida, empurrando horrendamente o carrinho escadaria abaixo.
O carrinho vai descendo aos solavancos dos degraus, em meio ao tiroteio que não dá tréguas. A intolerância, o desprezo mútuo, não dá tréguas para ninguém, seja mulher, seja senhora, seja bebê. Todos são alvos anônimos. Qualquer um serve.
Um tiro passa de raspão pelos eixos do carrinho, e penso que agora o carrinho ia virar, mas o carrinho vai pegando ainda mais velocidade. Era o destino decidindo se o bebê será salvo ou se será alvo. Alguns corpos estão ensangüentados no chão, e o carrinho passa por todos. As pessoas que conseguiram se proteger só miram o bebê agora. Por quase um minuto ele se tornara o centro das atenções.
Finalmente ele está chegando aos pés da escadaria. Os policiais começam a avançar escadaria acima. Alguns traficantes começam a dar as caras nas janelas. O confronto se acirra. Eu não quero ficar mais parado, não posso ficar aterrorizado. Não sei como, mas eu me movi. Eu saí de trás de um poste e corri em direção àquele bebê. Quando eu cheguei aos pés da escadaria o carrinho tinha acabado de tombar, próximo à entrada da igreja. O bebê chorava. Eu o peguei do chão e o abracei, ajoelhado em frente àqueles policiais, em frente àqueles traficantes, em frente àqueles moradores, em frente a todo mundo.
O Caveirão manobrou para dar uma nova investida. Eu não poderia permanecer ali. Ainda encontrei forças para adentrar na igreja e me abrigar. Sei que não adiantaria ter esperanças ou torcer para conseguir, mas tinha que agir. Não sei como, mas consegui.
A última coisa que me lembro, depois que eu segurei o bebê, foi da polícia descendo o morro, com alguns corpos e alguns homens presos. Eu ouvia de dentro do templo os barulhos das ambulâncias e a correria dos repórteres. Eu não conseguia deixar de abraçar aquele bebê, não queria soltá-lo. Queria irracionalmente protegê-lo deste mundo, e não queria ser capa de jornal por ter salvo um bebê. Queria protegê-lo da imprensa circense, dos políticos corruptos, dos juízes vendidos, dos pais irresponsáveis. Queria protegê-lo de um destino cruel.
Uma das crentes sacudiu os meus ombros, despertando-me de minhas divagações. Já terminou, repetia ela, já terminou. Não, não havia terminado. Estava muito longe de tudo isso terminar.