SOBRE AMIZADE E DINHEIRO

Nem sempre temos toda a informação necessária para um julgamento justo. E, para quem gosta de observar o comportamento humano, a saga de Carlos e Júlio representa bem isso.

Anos antes Júlio chegou a escola de Carlos no meio do ano, transferido de uma escola pública.

Sentam-se lado a lado. Carlos se apavora por ficar tão perto do novo aluno. Um delinqüente juvenil.

Apesar disso, a amizade logo aconteceu. Júlio tinha dificuldades em muitas matérias e Carlos sempre se prontificava em ajudá-lo. Já Carlos não se dava bem nos esportes, e Júlio se esmerava para incluí-lo nos times. Trocavam cartuchos de “vídeo-games”, ajudavam-se a completar figurinhas, saiam juntos para todo o lado.

Carlos foi para a faculdade, Júlio não. Enquanto Carlos estudava engenharia, Júlio começou a trabalhar como auxiliar administrativo em um escritório. Por ser muito inteligente e ágil, recebeu seguidas promoções, chegando a supervisor. Ganhava um pouco mais, e, como o amigo não trabalhava, normalmente era Júlio quem bancava os cinemas, os lanches, os ingressos e tudo o mais. Para si, para Carlos e para as namoradas de ambos. Mariana, a namorada de Carlos ficava incomodada com essa dependência financeira do amigo, mas, Carlos a repreendia dizendo “O Júlio é meu amigo, e amigo é para essas coisas”.

Quando Carlos se formou foi uma grande alegria na família. O pai deu a ele dinheiro para que ele comprasse um carro usado. O fato foi muito comemorado por todos, especialmente por Júlio: agora os dois casais não mais andariam a pé.

Carlos, que era muito sóbrio, gastou com o carro apenas a metade do dinheiro. Guardou a outra parte com a intenção de pedir Mariana em casamento. Sobre isso ele não falou a ninguém, nem mesmo a Júlio. Somente deu pistas a Mariana, dando conta de que o casamento deles poderia estar mais perto do que ela pensava.

Um dia, Júlio chegou à casa de Carlos muito cabisbaixo, e o amigo perguntou o que acontecia.

- Sabe, Carlão, eu estou muito chateado, cara.

-O que houve Júlio? Pode falar.

-Estou sentindo como se eu tivesse ganho na loteria mas não tivesse dinheiro para ir de ônibus buscar o prêmio.

-Como assim?

Julio então explicou que seu avô morrera na Itália, e que seu pai, doente, não tinha condições de ir até lá. O avô havia deixado uma herança que resolveria os problemas da família, mas, para habilitar-se a recebê-la, o herdeiro deveria comparecer a um cartório em Roma. Júlio poderia ir até lá representando o seu pai doente, posto que também fosse um herdeiro, mas, com que dinheiro?

Neste momento, foi Carlos quem falou:

-Talvez eu possa te ajudar. De quando você precisa?

-Ah, Carlão, fala sério! Você mal tem grana para tomar chope.

E Carlos contou a Júlio sobre o dinheiro guardado para o casamento. Era até mais do que Júlio precisava. Júlio ficou eufórico com a possibilidade de receber a tal herança e prometeu que daria a Carlos não apenas a correção do valor emprestado, mas, presentearia o casal com uma casa mobiliada. Carlos planejava que se casassem em três anos, morando de aluguel. Uma casa mobiliada somente adiantaria as coisas.

Carlos conversou com Mariana, que ficou duas vezes chateada. Uma por ele não ter contado antes que estava guardando dinheiro para que se casassem e outra porque ele pretendia dispor desse dinheiro para o que ela chamava “mais um capricho do seu amigo”. Nem mesmo a possibilidade de terem uma casa mobiliada parecia mostrar a Mariana que valeria à pena emprestar o dinheiro.

Carlos deu a Júlio a péssima nova, mas, Júlio, que já fizera inúmeros planos, agora procurava persuadir o amigo.

-Carlos, é sério cara. Em dois meses eu boto a mão na grana. É garantido, rapaz. Eu vou comprar a casa para vocês.

-Não sei, não, Júlio. Essa grana é pouca, mas, é tudo o que eu tenho...

No fim, Carlos agiu com o coração, e, para desespero de Mariana, emprestou o dinheiro a Júlio que partiu para Roma.

Dois meses depois, sem nenhuma notícia de Júlio, Carlos fica sabendo que o pai de Júlio faleceu.

Passou o outono, o inverno, a primavera e chegou outro verão. Nem sinal de Júlio.

Carlos e Mariana brigavam muito desde que Júlio viajara. Talvez pelo adiamento do casório, mas, também porque eles saiam cada vez menos para se divertir. A família de Carlos, que soube do empréstimo por Mariana, cobrava dele o que fora feito do dinheiro. Carlos estava profundamente preocupado com o sumiço do amigo. Não com o sumiço do dinheiro.

Outro ano se passou. Nada de Júlio.

Mariana terminou com Carlos. A família taxava Carlos de bobo por ter confiado por tanto tempo em um rapaz que só podia mesmo ser um ladrão. Carlos estava profundamente preocupado com o sumiço do dinheiro, e questionava-se se em algum momento tivera mesmo um amigo.

E as estações não param de passar. Mas neste tempo fala-se muito de Júlio.

O verão encontra um Carlos amargurado, pronto a denegrir Júlio para quem quer que fosse. Carlos culpava Júlio por ter perdido o seu dinheiro, sua noiva, o respeito de seus pais e até por estar desempregado.

Ele estava justamente falando mal de Júlio quando bateram à porta. Ele abriu, e era o próprio.

Júlio contou a ele que, ao chegar a Itália fora roubado. Levaram os seus documentos e suas malas, e, sem falar uma palavra em italiano ou inglês não tinha como pedir ajuda e nem como voltar. Dois meses depois, conheceu um brasileiro que o empregou como pedreiro e ele passou a trabalhar duro para juntar o dinheiro necessário para voltar e pagar a dívida com o amigo. Tentou ligar para casa algumas vezes, mas, a falta de resposta o fez ver que seu pai morrera. Daí ele trabalhava de dia e de noite para tentar conseguir tirar seus documentos e ter acesso à herança, que era bem menos do que ele imaginava. Ele somente conseguiu a parte dele. Com o falecimento do pai, a parte do falecido passava a ele, mas, teria de voltar a Itália para exercer este direito.

Culpado, Carlos pergunta:

-Mas, por que você não me procurou neste tempo todo? E, se ainda falta resolver alguma coisa, por que voltar agora? Não era mais fácil resolver tudo de uma vez?

-Enquanto eu era pedreiro na Itália, todos os dias eu morria de vergonha de não ter o dinheiro para te devolver. E quando o tive, lembrei que você casa esse ano. Foram-se três anos, e, a primeira coisa que eu quis foi te pagar. Eu vim comprar uma casa para você. Depois eu volto e aí sim me preocupo com a minha parte. Não foi isso o que você fez por mim há três anos?

Carlos silenciou. Não havia respostas a dar...