Último diálogo

Os sinos não dobraram por mim, caro Hemingway. Minha mão segura uma pistola e ela sorri para mim quase como a sua pistola sorriu para você e desejou o seu peito, estou quase beijando-a porque ela assim o quer, quer que eu a toque até que ela exploda num orgasmo violento dentro dos meus lábios, e não será aquele líquido meio gosmento que a gente tanto gosta de lamber em uma mulher, sinto lhe dizer. Ainda há muitas folhas a serem escritas e é certo, que eu as escreverei com sangue, com esse sangue que corre dos meus olhos quase como se fossem lágrimas e mancham o meu peito antes mesmo de tocar o chão, porque as minhas letras são carnes feridas e infeccionadas de muitos anos. Eu me olho no espelho e nada vejo a não ser este que vos fala, esse ser inerte de qualquer felicidade, como se ela fosse algo da qual se possa ter assim tão facilmente, mas os meus dedos são escorregadios, sempre a terei ali, quase entre eles, e a deixarei escorregar para o ralo dos meus sonhos mais secretos e mais profundos. O sol não se levantou ainda para mim e eu jamais me levantarei para ele.

É engraçado me ver esboçar um sorriso. Uma cavidade rasgada cheia de pedras amareladas e tortas, que chegam até a doer. Estou tentando sorrir agora, em frente ao espelho, tentando seduzir a pistola, minha única companhia feminina no momento. Espero que ela se sinta atraída pelo meu corpo franzino, seco e com suas ranhuras como se fosse uma folha morta, dessas que se encontra sempre pelas calçadas e que todos pisam, ninguém se importa mesmo, está morta. É Hemingway, acho que me resumo a uma folha morta, talvez seja triste, não mais para mim nem mais para ninguém, mas é apenas uma comparação cretina, muito cretina você diria, ou nem diria, daria-me razão em afirmar uma enorme cretinice medonha dessas. Vergonhoso caro amigo, chegar a esse ponto, ficar fletando com uma arma, teu livro aberto no chão me encorajando a fazer algo que, bem se sabe, ninguém quer fazer. Impulso apenas, tolo impulso de quem é covarde o suficiente para fugir de tudo, fechar a janela do mundo e se trancafiar dentro de si mesmo para sempre, não, na verdade, cruelmente mesmo, dentro de um caixão. Porra, acho que ninguém pensa nisso quando se mata. Tiro no peito, adeus problemas, Paris ainda é uma grande festa! Mas eu penso, sabe, eu penso nisso, em vermes, no cheiro da terra sobre o meu corpo, calor insuportável, meu corpo uma massa de sangue e gordura. Dois tiros seguidos, se eu conseguir, um pouco impossível, mas seria assim: Um bem no peito e com o restante de força que me restar, atiro nem na cabeça. Pronto, mortas emoção e razão. Mas e aí Hemingway, como se mata a alma? Será que ela vai continuar por aí? Então do que adianta fazer que nem você? Porque a alma vai ter lembrança, ela vai ficar vagando por aí vendo tudo o que os meus olhos tentaram não ver com os tiros. Ela vai sentir as mesmas coisas que eu sentia, esse misto de ódio e nojo, amor e esperança, até desejo e tesão, essas coisas idiotas do dia a dia de pessoas como nós dois. Dois grandes fracassados. Nem tanto você. Pelo menos conhecem o teu fracasso, se isso serve de algum consolo.

Acho melhor guardar essa porcaria. Acho melhor eu parar de olhar prá essa merda de espelho e querer matar esse filho da puta que eu to vendo. E pensando bem, acho melhor devolver o teu livro.

Katrina L
Enviado por Katrina L em 17/02/2009
Código do texto: T1444638
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