E-mail n.º 1000: as meninas
Elas se conheceram pela Internet. Estavam com muita fome de vida e de amor. Estavam desesperadas com tudo aquilo que a dúvida, o medo e o tédio podem proporcionar. Então se entregaram de alma (já que o corpo não poderia transitar pela rede) aos intermináveis e-mails: uma média de meia dúzia por dia, num período de seis meses – quatro destes antes de se provarem fisicamente. O conteúdo dos e-mails? Ali estava tudo. Quase mais que tudo. Tudo o que se tem vergonha de falar com a boca ali estava teclado com os dedos. Seus complexos, densos e inteiros espíritos fugiam para as pontas dos dedos, naquela ação frenética que se repetia diante de seus teclados, dia após dia. Espíritos fugindo para as pontas dos dedos, o mundo ao redor fugindo para o ar e o sangue fugindo para suas virilhas. Doces fugas. Nenhum prazer se iguala ao dos fugitivos. Fugitivos não são como covardes ou como ladrões. São migrantes com fome de viver. E assim eram elas duas.
Certo dia materializaram o que já gritava. Elas, enfim, se depararam uma diante da outra como velhas conhecidas. Estavam tensas. Tensas, porém tomadas de uma coisa que se pode chamar de felicidade. Tiraram suas vestes suadas e se beijaram tanto que pouco sobrou tempo pra conversar. Esqueceram até de dançar. Ah, sim. Aquilo era felicidade. Era tão bom que doía. Era gostoso de sentir, mas doloroso de pensar na impossibilidade daquilo ser pra sempre. Seus corpos se conheceram como afirmação geográfica. Como confirmação de que eram mais do que idéias: eram mulheres de corpo vivo.
De volta às suas construções diárias de realidade capitalista de moral escravizadora – ao que chamam cotidiano –, elas continuaram a se corresponder. As demandas da vida, porém, queriam mais do que elas podiam sustentar. Então, no milésimo e-mail, a mais nova das mulheres pediu o fim. Foi o fim dos e-mails. Elas continuaram a pensar muito no que lhes ocorrera naquele intenso ano de 2007. Enfim, o século XXI começara sob os trópicos, com o aborto do sim.
Hoje, a mais velha das duas está prestes a tomar uma decisão importante: direcionar todas as suas forças – ou a falta delas – para o fim de não mais pensar em tudo o que aconteceu. A decisão de não mais enviar mensagens em garrafas ao mar. Esta decisão pode vir a ser a verdadeira “cisão”. Uma decisão mais pesada que um “não” teclado em meio a nervos loucos. Uma decisão sábia, neste mundo de ignorâncias sólidas. Este mundo de delícias ridicularizadas ao nível de absurdo pueril. Então fica assim: cada menina se vira com os adultos que as rodeiam. Tratamento com gelo nas partes baixas e ópio nas altas: ópio pra esquecer que a vida é uma só.