A Sorveteria Jaque

A Sorveteria Jaque

Quando isso teve início, jamais pareceu ter sido uma pergunta relevante. Acaba-se se acostumando com tudo, essa é a verdade.

A Sorveteria Jaque fica no meio do quarteirão e tem 3 grandes portas para receber os fregueses, que quando não compram o produto e saem para consumi-lo onde bem quiserem, desfrutam-no nas mesas decoradas com estampas floridas, situadas entre o caixa e o balcão de pedidos. Pessoas entram e saem a toda hora. Entram felizes e saem felizes. Tem sido assim desde a inauguração. Data que também assinala o encetamento de estranha ocorrência, jamais notada, ou, caso notada, jamais comentada. Entre o caixa e o balcão há um ponto cego, que oculta um minúsculo vão de passagem. Neste vão, um alçapão camuflado de 30 cm de diâmetro, aproximadamente. Ao pisar ali, a pessoa é engolida, sem que ninguém perceba, e vai direto para um moedor. Dura a operação 2 minutos, nem isso. A pessoa, seja ela homem, mulher, criança ou cachorro, tanto faz, pessoas de todos os gêneros, e com pouca sorte, são moídas em tempo recorde e transformadas numa pasta. Independe se estejam trajadas com requinte ou desmazelo, vestidos como estiverem, de ceroulas ou balagandans, jaquetas ou capas de chuva, usando celulares ou porta canetas, não importa, tudo é moído de modo homogêneo, se transformando numa única pasta. Depois a pasta é colorizada e aromatizada artificialmente, sendo em seguida servida como sorvete. Este vem na forma de palito ou em bolas, pode vir acompanhado de caldas e coberturas, contando ainda a freguesia que por lá se esbalda com castanhas de caju em lasquinhas e cerejas colocadas sobre a pasta, e ou, sorvete, dos mais variados sabores. Pessoas chupam, lambem, se for crocante mastigam levemente. Quando não usufruem o produto nas dependências da sorveteria, levam-no para suas residências ou locais de trabalho, em embalagens especialmente desenvolvidas para esse fim. Existem casos onde o sorvete é misturado com leite, depois batido, e servido em copos grandes. Desde o primeiro dia a Sorveteria Jaque nunca sofreu com falta de movimento. Em tempo algum registrou-se qualquer queixa quanto à qualidade do produto. Acontece apenas que, em estatística ainda não demonstrada, uma parcela dos que por lá adentram caem no alçapão e são moídos. Ou triturados. Seja qual for a expressão, em última instância, transformam-se numa pasta. Que depois é servida, como já se disse. Não foi cientificamente comprovado mas sabe-se, através de rumores, da existência do alçapão e de seus prodígios. Todavia, o que a ciência não comprova ganha pouca autenticidade no logro dos boatos. Quem desconfia não abre a boca. Exceto para lamber, chupar ou mastigar levemente o quitute gelado, servido na Sorveteria Jaque. Que não fecha nunca. Funciona sete dias por semana, 24 horas por dia. Também se comenta que em períodos ditos “de festas”, mais pessoas caem no moedor. Período igualmente de maior afluência de consumidores. O que chega a ter um certo sentido, mas, como já se observou, nada é apurado. Pois não se comenta. E quando se comenta, trata-se de um comentário curto. De pouco fôlego. Os que filosofam sobre os raros comentários, estratificam ser melhor calar, já que não se sabe de ninguém que pelo menos uma vez na vida, não tenha ido fartar-se na Sorveteria Jaque. Com relação aos que caíram no alçapão, paciência, dizem, encolhendo os ombros. Assim, com que finalidade abrir a boca? Exceto para fazer o que a vizinhança mais gosta - especular sobre a vida íntima dos proprietários. Um casal. Ela, robusta, eficaz, atenciosa com a clientela e muito diligente. Ele, alto e magro, de temperamento oscilante. Outro dia, ouviram-na assim falando:

- Já que você não está fazendo nada, por que não vai lá embaixo ver se as engrenagens estão em ordem?

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 12/02/2009
Reeditado em 28/06/2013
Código do texto: T1436169
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