Produção do Tempo - Quinto Dia e Sexto Dia

Olho pelos vidros, olho a noite e as palavras descem-nos pelo abismo das veias, no âmago das sílabas o lume acende de imediato as pálpebras. Uma narrativa possível.

Tenho as palavras e a memória. A imaginação e a lucidez. Sentir, impacientemente. Os instrumentos da arte e a denúncia numa frase cintilante.

Há cidades que só existem na noite. Podemos chegar a qualquer hora,

mas elas emergem lentamente com a obscuridade, o instante onde se inicia a noite.

E o céu, o céu se irrompe ao crepúsculo, instruídas, as aves voam ao longo da marginal e desaparecem nos focos artificiais da luz. Estas árvores como colunas erguidas em sombras roxas.

Estas árvores de sombras esperam o desenho da noite, desenham uma realidade possível, deslizam entre lugares, uma personalidade comovida na folhagem.

Numa cidade existem árvores, mas as árvores não definem uma cidade. Talvez não definam. De certeza, as árvores são dos bosques, embora as cidades não sejam bosques e tenham árvores. E tenham bosques. E tenham lagos e flores e montanhas e rios e prados e relva. O que define uma cidade?

Há cidades junto ao mar, cidades há onde o mar está ausente.

Tenho de estar próximo do mar. Tenho de ouvir o mar, olhar-te, ó mar.

O mar devia imitar o céu. Omnipresente, nenhum lugar, nenhum lugar possível, nenhum lugar sem mar fosse possível. E os barcos fossem como as aves, sempre no horizonte, voando, navegando, navegar, voar, um único verbo.

O céu e o mar. Uma esfera. O céu é o mar, o mar é o céu. Uma questão de perspectiva. Uma questão de geometria descritiva.

Chego a esta cidade de noite. Primeiro, vou cumprimentar o mar. Depois, as árvores. Mas o mar é o mar. E

(continuo na próxima noite. Subir ao céu na próxima noite. Quer dizer, quando a noite cair, quando, o manto da obscuridade cobrir o mundo, cai sobre as páginas a narrativa em fragmentos. Cai a noite e a narrativa, o mesmo verbo. Assim: quando a noite cair, subir ao céu de elevador - que melhor forma de ascender ao céu -, subir a um varandim sobre o infinito. Não o céu, olhar do céu. Não olhar o céu, olhar do céu. Convido-te a olhar do céu, os olhos como uma praia estendida ao fundo, ao fundo azul da luz, olha até onde se olha o infinito. Nossos olhos e dedos e mente e corpo - Platão disse: demiurgos. Somos demiurgos no último andar da realidade).

Depois as árvores, os jardins, os navios, os cães, a relva, a noite, os muros e as pedras. Só depois os edifícios, as avenidas, os postes eléctricos, os candeeiros e os carros e as lojas e os autocarros e o metro. As ruas e o anúncios luminosos e as pessoas e a alegria, a felicidade, a tristeza e a solidão. A melancolia e os outros animais.

(Somos deuses quando subimos de elevador ao céu. Pertencemos, por momentos, a uma outra categoria de seres: somos seres criadores, omnipotentes, omnipresentes, omniscientes. Deste varandim do infinito, no último andar, dentro do céu, observo a totalidade, crio a própria realidade, nada escapa ao meu conhecimento. Sei, vejo, posso. Crio a vida. Vejamos: no edifício mais alto, no andar mais alto, no céu da noite imensa, onde não se pode subir mais, onde cheguei atrás de um vidro e da vertigem, sou o criador como os deuses da invenção. Crio a vida. E rio. Crio a vida rindo. Nenhum deus se lembrou de criar a vida rindo ).

Produção do Tempo -Sexto Dia

A criação do riso. Deus do riso. Penso em Diónisos, Eros e Pã. Talvez os gregos antigos se tenham lembrado do riso divino, talvez. No mundo antigo o riso foi adorado, mas não durou muito, o pecado substituiu o riso, o pecado estava ali aguardando os humanos. Recebemos o pecado como presente, ficou-nos a mágoa e o ressentimento. O pecado é a condição de salvação, desde que assumamos o arrependimento.

Aguardo a noite de olhos fechados. Sobre o varandim do céu. E declaro, não me arrependo de nada, a minha salvação é o riso, brindo ao riso nas asas diáfanas da noite.

A cidade prolonga-se pelos arredores, talvez haja um outro céu nos arredores. Talvez uma noite visite o céu dos arredores. Outra narrativa e outros deuses.

Talvez eu tenha outra noite ou esta mesma noite, talvez não tenha outra noite, seja esta única, unicamente possível, uma noite onde não esteja mais para amar a noite, onde não esteja mais, só a noite, independente de mim.

É, a noite ficará depois de mim. E aqui, no varandim do infinito, no céu, outro fale da noite, se escreva outra narrativa e a minha desapareça com o vento. A voz ou o grito, a raiva ou o desejo.

É. A minha vontade, o silêncio no ponto mais alto onde se vai de elevador. Ao céu.