SUBVISTA
I
Ta-tá... Trrrratatatá...
Um homem, apenas um homem, com uma toca ninja de só os olhos aparecerem naquela noite em meio ao barulho do vento. Uma só pessoa descarregou seu revólver de calibre 38, cano longo e prateado noutro homem - negro que desaparecia na escuridão da madrugada, sendo vistosos os branqueados dentes e o sangue jorrado de seu crânio perfurado totalmente, manchando a calçada.
Rapidamente o assassino entrou num gol branco, arrancando. Apenas os poucos transeuntes, logo após os disparos, ao ouvirem apenas os barulhos, olhavam o defunto ainda agonizante, a pensarem: morreu por que devia? Morreu por que assaltado? Morreu por que crioulo?..
II
São treze anos de serviços prestados à Polícia Civil deste estado (Rio de Janeiro: maravilhoso, famigerado!) sem entender os crimes que vêm e vão tão exacerbados. Tenho de prender o mendigo que despoja merda, excrementos na rua – não entendo a essência da arte escatológica -, no entanto, há criminosos por todas as partes, livres, longe da detenção, por habeas-corpus. Motoristas, moralistas e hipócritas libertos. Nefastos, pedófilos, estelionatários de olhos arregalados ao mundo e com dinheiros para os honorários bem vindos, de medíocres advogados.
Divido minha vida entre as mulheres, os plantões da polícia e o curso supletivo noturno. Pois se nada quiz na juventude, é porque nada sabia. Hei de ser um delegado! E na ciência das leis vou me destrinchar para bem sê-lo: cientista jurídico, juramentado num mundo estagnado, cujo desdobrar-se-á, pouco adiante, sem um mero passado.
III
Sei que nada entendem de mim. Nem eu! Meu avô também não entende da URV e é economista aposentado (não compreende que a cada CR$ 1.942,11, equivale a uma unidade real de valor, ao menos hoje). Meu pai é médico formado, construiu sua carreira fazendo abortos. Nunca fez um parto! A que planeta estamos interligados? Ele – meu pai –, criou-nos, eu e o meu irmão, cometendo, mantendo, metendo na honra de mocinhas experimentadas. Salvando vidas (assim dizia), e transgredindo o juramento de Hipócrates. Quiçá não?.. Eu já não concebi filhos. Houve um caso. Encaminhei ao papai. Problema elucidado!
Assim, o velho fez a vida praticando mortes, criando seus filhos. É também médico legista e necrófilo, o meu irmão mais velho. Ele afirma seu prazer nas vaginas gélidas, enrijecidas. Não goza em boceta quente de sua esposa, até que a morte venha arrematá-la, para que haja apenas um momento de orgasmos fulgurantes, após cópulas análogas, antevendo o seu corpo depois de despi-lo, precedendo o velório. Sonha com uma mágica foda matrimonial antes de vesti-lo e cremá-lo.
IV
Estou sozinho neste pesadelo coletivo, onde ímpetos se esbarram, desejos se calam. Sou o maluco na seara do onirismo, donde o mortos não se vão sozinhos e confluem comigo. Pois sou policial e isto redigo!
Daí, padecendo dias a fio entre mulheres, plantões e aulas secundárias, resguardo-me nas horas de folga. Tomo uma cervejinha. Bebo uma, bebo duas. Bato uma, cheiro várias carreiras paralelas e enfileiradas: -“É batizada”!.. Já não se ver muito das puras!.. Outro dia houve uma apreensão das boas lá na delegacia. Na operação estouramos uma boca de fumo. Nada de arrêgo ou desenrolo! A imprensa estava em nossa cola. Mostramos eficiência para às mídias. Desviei, eu e um amigo, algumas armas; um quilinho da maconha prensada; e um bocado de cocaína. Baforamos, cafungamos, malhamos o resto do pó e passamos a uns traficantes lá do Brás de Pina. Então vá dizer que não preciso: não sou casado; rapaz de boa família e tenho carro! Mas sou caso de polícia! E polícia é polícia, porra!.. Porra é o caralho! Ganho pouco e tenho um wolks 93 com o salário da polícia?!
Mas vem a copa por aí, novos governos estaduais; outros mandatos federais! Aliás, acho que o Fernando Henrique ganha em São Paulo, Tocantins e Brasília. Meu voto é pro Brizola. Sou pedetista! E se vier meter bronca eu te passo! Mato porque represento a força coercitiva do Estado.
V
Noutro dia, um malandro de Inhaúma me veio cheio de marra. Ele prometia me descer a porrada. Não sabia quem eu era e me medrava:
- Vô ti matá, meu camarada!... Tu vai tomá tiru na cara... Tu tá di marra... Dizia o negrinho com uma faca.
Fiquei quieto. Bicho ruim deita o bobo no momento certo! Assim foi. Sabia onde a presa morava; onde ele passava. Eu havia, no dia da discussão dentro do botequim, dado um esbarrão no cara e não me desculpei. Sujeito homem não se sujeita ao próximo. Prossegui, bebendo da minha bebida, até que o menor puxou a arma branca. Contada à história, foi só vigiar seus passos por alguns tempos e arrumar uma tocaia.
Minha folga do plantão; feriado na escola; o baile funk na favela e ele estava lá de boresta. Esperei a hora certa. O moleque de vinte anos, vinha da “última” festa cercado de cupichas e os meus dedos no apogeu dos quarenta, um 38 engatilhou. Minha toca ninja escondia os lábios e o resto da face. Ta-tá... Trrrratatatá... Só atirei na cara. Caiu morto ainda agonizando. Arranquei com o gol, e hoje foram os gols do Brasil nas oitavas. Será tetra afinal? Morreu Ayrton Senna do Brasil! Ninguém nada viu.
“Deixe eu dançar, pro meu corpo ficar odara”... Escutava Caetano Veloso em minha fuga pela avenida Automóvel Clube, quando já evadido do Vicente de Carvalho, distante, reduzi a velocidade do carro. Chegando à minha casa, postei-me numa ioga. Este trabalho é estressante; esta vida é muito louca. Tenho estado sedento do retorno ao uso das técnicas ou exercícios físicos, advindos dos saberes orientais. Sobretudo, andei afastando-me da preocupação mental com o espírito.
VI
Volto à delegacia na alta madrugada, eu e um companheiro após uma ocorrência num bairro próximo. Tudo indica que foi crime passional. Os dois corpos estendidos no chão, naquela cama de sangue. Duas mulheres, uma delas com marcas de balas no peito e estômago. No outro corpo, com uma arma de fogo à mão, era visível uma a perfuração na nuca. Os moradores cagados de medo ante tal situação, até agradeciam aos deuses Jeová, Alah, os etcéteras e Oxalá. O síndico do prédio nos relatou que as brigas eram constantes e a ciumeira, oscilante por parte das duas. Até que alguém ouviu os disparos. Na delegacia perguntei pelo delegado. O escrivão sozinho ou mal acompanhado com seu revólver enferrujado, disse-me sobre o doutor:
- Tirou a semana para uma viagem à Disney com a família. E ficará mais uns dias para compras em Miami.
- Bem, um dia eu chego lá!.. Respondi-o vagamente.
VII
O nome do veado era Otacílio. Não nos adiantava em porra nenhuma! Cumpria os protocolos eméritos dos servidores públicos, sabendo que não eram para executá-los. Tinha ingressado há pouco na instituição - apesar de ser mais velho que eu -. O babaca queria mostrar trabalho. Finado!
Certa vista, estávamos numa operação conjunta num morro. Destas que não se prende ninguém. Mal eu sabia que ali assinaria uma cagada daquelas! Começamos a trocar tiros com os bandidos, escondidos entre travessas e becos. Eles iam fugindo e Otacílio me disse:
- Me dá cobertura, ô cara!..
Ele foi à frente, eu o seguindo amparado de atenção. Daí, não deixando escapar essa oportunidade, troquei a pistola e atirei em seu crânio. Covardia! Nunca havia matado alguém por trás: -“Otacílio, Otacílio, foda-se”!
Nesta empreitada dum maculo anti-heroísmo, eu quase me arrebentei. Socorri meu colega, que morto chegou ao hospital, deixando o nosso antigo opala de trabalho, todo ensangüentado. Também não confessei o crime, o que gerou uma guerra de proporções maiores na cidade: a morte do investigador filho da puta, foi parar nos jornais. Após o enterro a favela foi toda esburacada por vingativos policiais. Até que fui chamado a prestar depoimento sobre o homicídio. Entreguei minha pistola e distintivo para averiguação. Entenderam que eu era o único companheiro seu naquele momento, poderá não ter sido coisa de bandidos. Não foi? Não fui condenado pelo crime. Livrei-me da arma e o exame de balística não acusou que a bala assassina fosse da pistola a mim confiada. Regressei logo ao trabalho.
VIII
Outro dia, junto ao Tião (parceiro de muitas aventuras), festejávamos dentro da D20 (nossa viatura), a venda de inúmeros fuzis para traficantes adjacentes. Saí rapidamente do carro, caminhando ao boteco para comprar cigarros. Ao longe, avistei um moleque de treze anos, arrancando ferozmente a bolsa de uma senhora. Acho que ele nem percebeu próximo o carro da polícia. O meliante vinha em minha direção. Coloquei repentinamente meu pé em seu caminho, ele deu um tropeção. A bolsa voou que nem soubemos onde parou. Levantei-o pela gola rasgada da blusa suja e tratei de dá-lo um safanão. Tião veio com toda a sua gordura e arremeteu-lhe um chute no rosto. Ele caía pranteando ao chão. Pisei em seus testículos e era aplaudido pela multidão. Peguei o guri de treze anos e joguei no carro. Levantei, sem hesitar, a hipótese de matá-lo:
- Tá maluco? "Cê num si" lembra daquelas "chacina" há "pôco" tempo não irmão?.. "Matá" pivete agora é "querê" "pegá" cadeia "braba" e "parecê" na televisão... Endurecia um discurso humanitário, meu amigo Tião.
- Tem razão, vamos soltar este delinquente... Mas se o vir por aí te quebro hein!
O garoto choroso, de treze anos, foi embora dizendo: -“Brigado tio”!.. Não sei se agradecia a mim, a Deus ou ao Tião.
IX
Minha cunhada engravidou. O Brasil disputou a final com a Itália e ganhou:
- É TETRA!... Gritava Galvão.
- O filho não é seu, meu irmão!.
- Deixe ela curtir o momento enquanto traço minhas gurias lá no necrotério... Sabe, deflorei uma defuntazinha de dezessete anos outro dia...
- Deixe viver seu irmão, sobressaltado na perspectiva macabra e orgiástica, rapaz!.. Alfinetava meu pai... Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu,eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu,eu nunca tive um neto! Exclamava o velho.
- Você matou meu bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis, bis bisneto... Apontava meu avô fazendo referência a um filho meu abortado.
- Vejam que já, já, já, já, já, já, já, já, já, já, já, já, já, já, já, já, já tive a empáfia de profetizar ao meu filho um futuro pederástico!.. E papai completava a conversa com nova referência a mim.
X
Eu sobrevoei o recanto das guerras; a subjetivação da modernidade. Quando lá, fui vítima do orgulho, ódio, estrelismo e insensatez. Tanta promiscuidade e mesquinhez. Todavia, ando resolvendo-me na análise, nos cinismos, nos subterfúgios da sacanagem, nos ansiolíticos, nos anfetamínicos, nos, nos, nos, nos...
XI
Mamãe, coitada, mal a conheci! Meu pai vendia morfina e outros remédios e entorpecentes na Lapa para conseguir algum dinheiro a mais e complementar na mesada de jovem recebida, enquanto aos vinte e três anos estudava medicina. Minha mãe era prostituta. Puta uns cinco anos mais velha que ele e cliente assídua daquele jovem mascate de drogas. Duma simplória relação comercial, passou rápido à conjugal. Casaram-se antes mesmo de papai se formar. Ele, para sustentá-la fora do meretrício, passou também a vender coisas bem mais pesadas, se considerarmos à epoca, assim, amealhando um bom trocado ao provimento inicial do casamento e um filho – meu querido irmão – já a caminho.
Mamãe, além de esposa, foi também promovida à usuária vip dos produtos que seu marido passava. Era uma boa mulher! Apenas fraca para o álcool, tabagismo e muitas outras substâncias químicas. Cumpria com esmero suas funções de dona de casa. Porém, houve um dia, no qual, eu havia ter já completado sete anos e meu irmão, doze. Papai há muito, não mais traficava. Já nossa mãe permanecia viciada. Dependente química, depressiva, conseguia bulas de remédios controlados com nosso pai. Ressalvo neste momento, mais uma vez, talvez, que ele sempre exerceu sua função médica clandestinamente. Contudo, sempre foi inscrito no Conselho de Medicina, o que lhe fazia gozar desta atribuição: receitar quaisquer medicações. Ele ainda ganha alguns trocados passando receitas de remédios tarjas-pretas para uns dependentes desesperados da cidade.
Explicitado tais fatos, voltemos ao contexto deste texto! Papai às vezes relutava na liberação dos medicamentos à mamãe. Mas ela usava de suas artimanhas: quebrava os móveis da casa; ou agarrada a mim ou meu irmão, frente ao esposo, com um canivete à mão apontado às nossas carótidas, ameaçava matar-nos; ou até sair nua à rua! Mamãe, mulher forte, de pulso! Sempre conseguia o que almejava. Um dia, nos meus sete anos – como já dito -, num calor veraneio daqueles de fritar até banhos frios, papai trabalhava em seu consultório e “centro-cirúrgico” ( uma antiga meia-água, transformada num pequeno prédio, localizado aos fundos do quintal de nossa casa), atendendo suas infelizes gestantes-clientes. Já passavam das quatorze horas e minha mãe não acordava. Seu quarto escuro, permanecia trancado. Era comum que àquela mulher drogada sempre levantasse até meio-dia, no máximo! Meu pai preocupado, terminou o atendimento duma paciente, interrompeu com as outras e resolveu, pessoalmente, acordar minha mãe. Pegou o mole de chaves e pediu a empregada distrair-nos, garotos, já que destrancaria o quarto. Devo dizer que, era vontade dos dois, o cômodo permanecer fechado, principalmente, quando minha mãe se encontrava nele. Cultivava o hábito de se deitar nua nos verões e não era desejável, a nós crianças, presenciar estas situações. Papai abriu o recinto e de lá saiu desolado em estado de choque. Tamanho foi seu pavor, palidez e ao mesmo tempo, introspecção! Quando eu e o meu irmão o vimos e digo: não houve nenhuma reação de sua parte quanto nossa atitude infanto-juvenil em adentrar à suíte. Lá estava mamãe de cumes arregalados; pelada aos pêlos; deitada de tronco para cima; braços, pernas abertas aos ventos, uma baba gosmenta, manchando os lábios roxos e muito sangue jorrado das narinas. Estava morta, estava fria, estava grávida de cinco meses e papai sabia: daquela vez, pelo tamanho do ventre, decerto seria menina!
XII
Conheço grávidas pelo nariz. O cheiro me parece diferente. São sensuais e pena que nunca me prendi a alguém para tentar assim fazê-la. Numa ocasião apareceu Celeste. Era uma piranha de Del Castilho! Veio com este papo de atraso e um exame positivo. Mandei procurar o verdadeiro pai. Ela jurou ser meu e suplicou algum dinheiro para tirar. A verdade era que a vadia, casada com um contrabandista endinheirado, avarento e barra-pesada, traía-o com quem aparecia. Engravidar? Não, nem pensaria! O corno fizera anos antes vasectomia.
- “Tô fudida!”... Exclamava...
- Não, não está!.. Eu consolei-a dando um cartão de meu pai... Vá neste endereço e o diga ser de minha parte. Sua cirurgia será gratuita.
Ela não só foi desta vez (aliás, de graça). Posteriormente, engordou o pró-labore de meu pai. Mas não eram meus! Eram gestações provenientes de novos casos extraconjugais por Celeste cometidos.
XIII
Um dia, lá pelos sóis joviais, presenciei uma briga entre dois caras na minha rua. O mais alto levou a pior - ganhou um soco no nariz e começou a cuspir sangue pelos respectivos orifícios. Tive vontade de beber daquela secreção!
A partir de então, prossegui com uma idéia fixa: experimentar carne humana!.. Nessa época, eu era secretário no consultório do papai, bem como já disse, funcionava nos fundos de minha casa no subúrbio de Cascadura. Eu olhava às fêmeas, as quais, buscavam alento no meu sábio velho e de lá saíam mancando e até carregadas! Após o expediente na “clínica”, sempre me foi incumbido limpá-la e organizá-la para o próximo dia. Instrumentos fora do lugar, e sangue!.. Não, algumas gotas secas, sempre manchando o cômodo. Que vontade de saboreá-las!
Eu permanecia horas e horas sentado no quarto do casal na imensa edificação onde residia, e durante muito tempo, mantinha meus olhos fixos na cama onde minha mãe havia morrido. Era como fosse ao vivo, naquele momento: ela nua, de olhar vazio, dilatado, sangrando pelas vias nasais. Eu ingeriria seu sangue e tomaria sua carne para mim!
Certa vez, morreu uma pobre moça num procedimento abortivo nas mãos de papai. De tão novinha, a garota, digo que deveria ser calúnia, denominá-la moça! Meu pai e a enfermeira ficaram atônitos. Ela foi sozinha e, resolveram livrar-se do corpo em algumas horas, caso ninguém o reclamasse. Eu pedi o cadáver para mim – era a minha chance! Ele atordoado, num primeiro instante, concedeu-me o regozijo em ingeri-lo no paladar. No entanto, com medo de ver seu filho em complicações policiais – talvez -, voltou atrás na tal decisão e me frustrou. Oh, senhor Deus, devorar desta carne feminina, ser-me-ia sua bênção!
Porém, nessa época, por volta dos meus vinte e dois anos, tive um grande amigo, neto de um fazendeiro mineiro. Vivia na fazenda do avô e gostava de carnes exóticas. Em seu currículo gastromônico, já havia comido ratos, cavalos, gambás, cães, gatos, macacos, zebras, araras, ursos, e invejem: ele assumira ter almoçado em tempos de curso ginasial um coleguinha de classe!
Assim, passei a freqüentar constantemente o recanto mineiro de sua família, buscando um voluntário nessa empreitada antropofágica. Meu amigo tinha vinte e três anos. Meu amigo era um ano mais velho que eu. Uma vez pedi para que ele se habilitasse a morrer por mim. Quiz cozinhá-lo – meu amigo de vinte e três anos - num ensopadinho humano. Todavia, minha proposta não foi aceita de bom grado.
Em sua roça, havia um empregado obeso, barbudo, sem camisa, de trinta e oito anos. Ele pouco falava e era triste. Numa ocasião ele se dispôs à cobaia em nossa experiência canibal. O empregado obeso, barbudo, sem camisa, de trinta e oito anos, apoiou-se com suas duas mãos gordas e os braços esticados na porteira do estábulo. Eu golpeei uma facada sobre sua nuca, ele caiu ajoelhado e babando. Meu amigo de vinte e três anos, deu-lho outra facada onde eu havia espetado pouco antes. O empregado gordo, barbudo, sem camisa, de trinta e oito anos, deitou ao chão, cuspindo à própria língua, apontando seus últimos sinais. Imobilizei suas mãos com uma corda, abri a porteira e puxamos bem pouco para fora do estábulo. Meu amigo de vinte e três anos, já ao ar livre, ainda terminou por degolá-lo. O empregado obeso, barbudo, sem camisa, de trinta e oito anos, contorceu-se alguns instantes e logo deixou à “dona Morte” se encarregar de sua sorte. Saltei àquele corpo gordo, ali mesmo, bebendo do sangue fervente e comendo uma orelha crua. Meu amigo de vinte e três anos tirou um talho com a faca, do imenso ventre mole e morto da vítima, mastigando e engolindo-o ainda quente. Assim, seguimos às tradições da arte culinária: arrancar a pele, temperar a carne, etc. Almoçamos, jantamos gente crua, cozida, assada na lenha, na brasa, Refestelamo-nos naquela saborosa refeição farta de gordura. Oh Deus, nosso senhor, tenha muito bem ao seu lado o empregado obeso, barbudo, sem camisa, de trinta e oito anos!
XIV
Eu acordei naquele dia preparado para morrer. Senti a morte próxima e o fim de minha missão. Qual missão? Só os deuses sabem! Eu não poderia parar, tinha só quarenta anos! Necessitava prosseguir em meu torto caminho, continuar! No dia anterior presenciei pela tevê, o professor, ex-ministro, senador e sociólogo Fernando Henrique Cardoso ser congratulado pela vitória nas eleições. Confesso: -“não fui tomado por emoções positivas ou negativas. Estar-me-ia morto em questão de dias. Eu reconhecia”!
Levantei com esta efêmera intuição e precisava da continuação. Pensei: -“Hoje não vou trabalhar”!.. Desenhei algumas carreiras sobre a mesa de centro da sala do apartamento. Eu só precisava cheirar naquele momento!
Enquanto eu ia inalando as paralelas, um infinito sentimento de que a morte não traz consigo, dominava-me, trazendo contento. Até que soou a campainha. Trêmulo, nervoso, no barato,.. não contive à sucção da última fileira. Peguei minha arma e me dirigi à porta:
- Quem é?
- Doaaa... Eu não estava escutando. Apenas sabia que era uma mulher.
- Quem?.. Fala alto porra!.. Disse com o cano da pistola apontado para a porta.
- DOÓRAÁ... Gritou a moça.
- Dora?! Que caralho de Dora?
- Filha da Augusta, sua amiga de infância.
Ela não falou nem alto, nem baixo. Todavia, sua voz era mais nítida. Lembrei da Augusta, abri a porta ainda desconfiado. Quando vi a mulher, digo, menina, coloquei o revólver na cintura. Eu estava sem camisa e pus a compor-me, assim que ordenei sua entrada. Era uma linda moça, e não me descortinava estranho, seu rosto demasiado sexy! Ela, nada parecia com a mãe em sua idade. Minha amiga e ex-namorada, era branca, loura de olhos verdes. Dora apenas herdara da mãe cabelos esvoaçados e um olhar sedutor de lolita. Era morena de olhos castanhos. Magrinha, mas de curvas corpóreas imprescindíveis à beleza feminina de sua mimosa idade. Tímida, tive de quase implorar para que ela se acomodasse ao meu encardido sofá. Ofereci uma bebida, ela recusou! Ofereci um café, ela se negou! Ofereci minha arma, ela se assustou! Sentei noutra poltrona, localizada ao lado esquerdo de onde estava, examinando-a e disse:
- Dora, filha de Augusta?!.. A que prazer devo sua presença? Não sabia que minha amiga tinha casado!
- Ela nunca casou... Disse a moça.
- Perdão, sou um solteirão e do tempo que ainda acha: "para parir é preciso casar"! Amante à moda antiga, saca?.. Disse não empinando um sorriso moralista e quase cantando à menina. Nela havia um brilho no olhar, mas logo percebi não ser o qual eu almejava: o encantamento de mulher!
- Pois bem... Cruzei e esfreguei minhas mãos... Como anda sua mãe?
- Morreu...
- Quando? Como?
- Mês passado. Insuficiência renal.
Após à revelação, vendo Dora sentada, chorosa, veio-me um aperto no coração. Esse falecimento, essa garota, será o soar de minha nota final? Eu jamais imaginaria Augusta, meu antigo amor, morta! Aliás, lembrei que Dora era o nome de minha falecida avó paterna, vizinha nossa em Cascadura. Onde fui feliz enquanto criança, onde minha mãe faleceu, onde me descobri no amor com Augusta! E revelei-a:
- Aliás, lembrei que Dora era o nome de minha falecida avó paterna, vizinha nossa em Cascadura. Onde fui feliz quando criança, onde minha mãe faleceu, onde me descobri no amor com Augusta!
- Sei, e por isso tenho este nome e estou aqui!
Fiquei intrigado e perguntei:
- Qual sua idade garota?
Ela retirou uma folha amarelada, dobrada, remendada com fita adesiva transparente da bolsa e entregou-me. Era sua certidão de nascimento. Lá estava escrito:
" REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
REGISTRO CIVIL
NONA__ a CIRCUNSCRIÇÃO - QUINTA___ a ZONA – Freguesia de SAO CRISTOVAO__
NASCIMENTO Nº 9 840__
O oficial do registro civil das Pessoas Naturais NONA__ circunscrição da Freguesia de SAO CRISTÓVAO_____do Estado do Rio de Janeiro.
CERTIFICO que à fls 101v__do livro nº B/320__ de Registro de nascimento foi lavrado hoje o assentamento de DORA MARIA RODRIGUES DA SILVA_===_____________ _______________________________________________________________
nascido ( a ) aos_ QUINZE__ de MARÇO_ de 1.973 às 05_ horas e 04__ minutos, na casa nº CLÍNICA DOUTOR ALOAN___________________________________________________________
do sexo FEMININO___, de cor === ______________. filho (a) _______________________________
de ===_____________________________________________________________________________
e de AUGUSTA RODRIGUES DA SILVA__________________________________________________
sendo avós paternos ===_______________________________________________________________
____________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________
e maternos ANTÔNIO JOAQUIM DA SILVA E ELENILDA DA CONCEICAO RODRIGUES DA SILVA ===
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Foi declarante______O AVO MATERNO_____________ ___
e serviram de testemunhas LUIZ DAMACENO DE ALMEIDA FILHO E JULIO CEZAR______________ _PINHEIRO_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Observações________________________________________________________
____________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________________
ISENTA DE SELO EX-VI DO DEC. Nº 4.857 DE 9- 11- 1939, ARTº 81
O referido é verdade e dou fé.
Rio de Janeiro VINTE_ de MARÇO de 19 73_
“...
Assustado, desconfiado, olhei para ela. Lembrei do caso de amor com Augusta pelos idos de 72. Não haveria como a menina ser filha de outra pessoa! Fui o primeiro homem de sua mãe. Ela, recatada, evangélica, caiu em meus braços diabólicos e não era guria de se enfezar com outros caras. Só poderia ser... Dora então tirou uma foto antiga de sua bolsa ( minha e de sua mãe), preto, branca e hepática, devido ao tempo. Entregou-me e no verso li uma dedicatória escrita por mim:
“Guarde no coração esta recordação..
Seu grande amor...
18/07/1972”...
Pálido, analisei a foto e percebi uma efêmera semelhança entre mim e Dora. Como éramos iguais! Na fotografia, eu tinha uns dezoito anos – pouco mais novo que a guria. Porém a cor, as feições, as melenas pesadas castanho-escuras, as quais cultivei longas muito tempo nos anos setenta! Tudo, tudo, tudo.. Quase tudo: tratava-se de pessoas distintas, sexos distintos! Meus dedos passeavam em seu rosto, enquanto, estupefato, meus olhos se dividiam entre a foto e a jovem. Até que à coragem me incitou:
- Por isso terminou comigo, insinuando que à distância donde moraria com os pais seria um agravante em nosso namoro. Gostei tanto de sua mãe, menina! Por que ela nunca me revelou?
- Minha mãe tinha medo do seu pai.
- Meu pai?!
- É, uma vez ela disse que ele é médico, entende?
- Certamente, mas... Estou sem palavras!
- Entendo o senhor. Por minha causa, mamãe teve de se mudar para à Baixada Fluminense, foi excluída da igreja e ficou quase dez anos sem falar com o meu avô. Ele me assumiu como filha, mas...
- Mas?... Perguntei.
- Só fez as pazes com mamãe no dia em que vovó morreu. Não foi por muito tempo! Ele faleceu em menos de um ano... Ela pausou e prosseguiu... Sabe, um dia, próximo ao meu aniversário de quinze anos, mamãe ficou sabendo de seu paradeiro. Soubemos que era policial e em qual delegacia estava lotado. Foi quando o vi de longe pela primeira vez.
- Então, explique o motivo de não se apresentar a mim!
- Vimos, nós duas, você sair de mãos dadas com uma mulher. Decidimos não revelá-lo. Caímos na realidade: você poderia está casado, ter filhos e pronto! Não quisemos atrapalhar sua vida.
- Nunca fui casado e ao menos ao que sei, digo, nem era de meu conhecimento à paternidade até você aparecer. Eis à revelação! Minha continuação!..
Levantei feliz e correndo pelos cômodos do apartamento como uma lebre, gritando repetidamente:
-“CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO... AGORA POSSO SEGUIR À PAZ!... CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO, CONTINUAÇÃO"...
Ela emanava um manifesto, rodopiando naquele apartamento:
- SOU CRIA DA "SENZALA FLUMINENSE". CARIOCA DA GEMA, PORRA! ASSENTADA EM SÃO CRISTÓVÃO. PENSA O QUE? NASCI EM CLÍNICA PARTICULAR, SEM PAGAR! GRAÇAS AO INTERMÉDIO DE UM AMIGO ENFERMEIRO DO VOVÔ. POR QUE? POR QUE? PORQUE O BRASIL É O PAÍS DO “ME FAÇA UM FAVOR”!.. “ME DÊ DOIS “REAL” E TE DOU O CUZINHO”“!.. É E FOI O PAÍS DO PATRIARCALISMO, NEPOTISMO, DESENVOLVIMENTISMO E TANTOS “ISMOS” , NEGATIVISMO, PORRA-LOUQUISMO!
(... )
- Do que você precisa?.. Perguntei-a
- Não vim cá à amealhar dinheiros.
- Do que você precisa?
- Não vim cá, não vim cá!
- Porra, do que você precisa?.. Perdi minha paciência.
- Tudo!.. Respondeu... Mamãe morreu e me deixou numa situação delicada: estou desempregada, com o aluguel atrasado, comendo apenas a comida que o meu namorado traz. Mamãe era faxineira duma distribuidora de tubos e conexões lá em Caxias ( município do Estado do Rio de Janeiro). Eu, por ser maior, a lei não me confere mais o direito à pensão alimentícia.
- E o seu namorado?
- Ora, ele é recém formado. Graduado em geografia, leciona numa escola privada sabe? Pagamento atrasado há meses, pouca grana, muitas dívidas!
- Mas que profissão filha da puta, hein?!.. Observei.
- É, ele queria engenharia mas é um curso de custo altíssimo até nas universidades estatais. Aliás, ele estudou numa estadual! Escolheu ser professor e geógrafo porque sabia, ao menos enquanto universitário, não obter condições de fazer seus estudos realmente no que desejava. Então, trabalhava vendendo roupas em horário comercial na loja onde nos conhecemos, onde também fui funcionária!.. E cumpria o curso noturno.
- Gostei do candango!.. Determinado!.. Me diga: não pensa em casar com esse rapaz?
- Nós pensamos em nos juntarmos quando as coisas melhorarem. Ele até já passou num concurso público e espera ser convocado à posse. Prestou provas para geógrafo num órgão de pesquisa. O salário não é grande coisa, mas para começar... Ele me fez proposta de morar na casa de sua família, mas seus pais não gostam de mim! É o que dificulta. Estou só!
- Não está! Vou levantar algum dinheiro para vocês começarem, na condição de eu conhecer esse garoto. Veja: hoje mesmo você sairá com um cheque meu daqui para sanar parte de suas despesas. Depois entrego o resto.
XV
Após três dias virado, trabalhando direto, correndo o Rio de Janeiro atrás de alguns presos foragidos da delegacia, saí moído daquele pardieiro. Ao menos conseguimos capturar todos, alguns mortos, outros feridos, tudo bem!
Saí do serviço às seis da matina e, quando o relógio soava sete horas, eu já estava na casa de Dora, minha filha. Tinha combinado a comparecer para entregá-la três mil reais em espécie, conforme a havia prometido. Neste mês e pouco em que nos conhecemos, eu já tinha reconhecido sua paternidade e até apareceu uns galegos para eu ripar em troca de grana. Assim, deu para levantar a quantia que ajudaria Dora e o marido neste início de vida. Ela me preparou um célebre banquete de café matinal. Contou-me de suas novas; disse que começaria a trabalhar numa tapeçaria na próxima semana e o seu marido fora convocado a apresentar-se ao emprego público. Apenas estava no estágio dos exames médicos. Disse-me mais: disse-me, disse-me, disse-me, disse-me...
Ficamos sentados de mãos dadas ao sofá, assistindo desenhos animados e tão logo, pouco falávamos. Era impossível não notar a felicidade, finalmente, estampada no rosto de minha menina tão sofrida! Eu revelei que a amava, ela retorquiu na mesma recíproca. E acabado!
Saí da casa de Dora e voltei ao centro do Rio de Janeiro. Dirigi-me ao escritório de minha namorada. Uma mulher divorciada de trinta anos e mãe de dois filhos pré-adolescentes. Cheguei à porta de seu departamento e fiz um gesto obsceno com a língua para que fosse notado. Fui chamado à sua mesa por um aceno dela muito safado! Segui em sua direção, ajeitando o pênis e a bolsa escrotal com a mão. Enquanto alguns de seus colegas dormiam, outros trabalhavam e outros em tons ligeiramente baixos, comentavam-me. Os demais mal reparavam minha presença.
Comecei num papo de namorado com ela: -“E aí, hoje tem jogo? Rola?.. O que vai fazer à noite?..
XVI
Eu corria àquelas repartições descarregando minha pistola, mas o velho calvo, nanico, macérrimo, vestindo terno, portava um fuzil. Pedi ajuda e não chegava. Ordenei a minha namorada, divorciada de trinta anos, permanecer embaixo de sua mesa agachada. O coroa de sessenta e três anos atirava como um louco! Matou o diretor, as copeiras e estava em busca das crianças: -“Às crianças”!.. Urgia. Fui seguindo-o com minha pistola, tentando um diálogo:
- As crianças, eu quero!.. Quero matá-las... Matar as crianças!.. E atirava sobre mim. Mas eu me protegia dos estilhaços.
- Aqui não há crianças, meu senhor!.. Há uma creche na esquina. Procure-as por lá!.. Aconselhei-o enquanto disparava um tiro sobre o velho de sessenta e três anos.
- Não me engane, quero as crianças!..
E o velho de sessenta e três anos fez mais disparos contra a mim. Sendo mais esperto, usei de escudo um anão que por ali passava ( este, nosso querido ente. Não mais se encontra entre a gente ).
O velho de sessenta e três anos, louco, começou a atirar para o teto. Ele berrava, chorava, descarregava a arma como ela se movesse numa projeção autônoma. Até que me coloquei numa posição estratégica. A bala atravessou seu rosto esquelético, desfigurando-o. Tombou como um gigante, morreu como um rato. Vinham todos em sua direção. Um colega de trabalho morto, revoltado! Trinta e cinco anos devotados àquele ingrato emprego. Minha namorada, divorciada de trinta anos, sentou-se na poça de sangue, acomodou o crânio perfurado em suas pernas desesperadas. Berrava em manifesto à morte do amigo e me acusava: - “Assassino”!
XVII
Eu estava em casa. Tinha de dar prosseguimento ao meu projeto. À continuação! Ouvia uma rádio noticiar o falecimento do cantor, maestro e compositor Tom Jobim. Estava testando a resistência do lustre da sala. Ficava intervalos temporais incontáveis, nele pendurado. Era chegada à hora! Tudo pela continuação, pelo prosseguimento!
Bem amarrado à forca do lustre em fio náilon, envolvi-o ao meu pescoço e derrubei à pequena escada doméstica. Senti um estalo entre o pescoço e o tronco. Alguns minutos de agonia. “Findar para continuar”! Assim, pensava enquanto morria. Minhas funções respiratórias já se negavam a cumprir suas atribuições fisiológicas. Lembranças transpassavam suspensas aos meus olhos, enquanto se iam dilatando. “Foi preciso”! Pensei um pensamento frio, cauteloso, único e último, antes do meu cérebro se apagar.
XVIII
Um véu e moscas ! Também um cobertor cheiroso a lírios incomodavam meu olfato. Era muito forte o aroma, ora! E como eu estivesse deitado, vi minha filha chorando, ao passo que me observava, abraçada ao meu pai:
- Por que ele fez isso? Mal conheci meu paizinho! Fui abandonada!
- Acalme-se moça, o senhor Deus quiz assim!.. Conformava-se papai.
Ainda deitado, meio que, imobilizado (era a sensação que me vinha ), não entendia patavinas daquelas palavras: abandonei quem? O que quiz o senhor Deus?
Eu estava de pé, num repente, vendo ao redor muita gente naquela sala de cores fúnebres e paredes manchadas. Amigos meus, da polícia e de toda a vida, olhando um ao outro e dizendo baixo:
- Morreu mesmo!
Aproximei-me de de encontro ao caixão. Agora entendo! Àquela confraria era para um velório. Aquilo era uma capela. Mas como fui parar ali? Recostei à grande concha. Susto! Jamais imaginei que eu me tornasse um morto tão feio: amarelado, magro, algodões tapando às vias bucais, nasais, olhos esbugalhados, exprimindo dor e tristeza na beleza desse unânime adeus.
Muita gente compareceu à prestar-me condolências. Observei meu irmão conversando, discretamente, com um primo nosso capixaba ( estuprador procurado pelos lados de Vitória):
- Rapaz, viu a bonequinha aí da capela ao lado?
- Vinte aninhos, foi câncer no reto... Respondeu o primo.
- Câncer no reto?! Assim enlouqueço! Me dê licença? Tenho bater uma punheta. Onde é o banheiro?..
E lá se foi meu consanguíneo, à procura de privacidade, escondendo seu pênis em ereção. O vi correr para que a vergonha não o tomasse frente à sua esposa gestante.
Morrer é demasiado louco! Eu percebia os comentários infelizes de amigos, ou os quais, em meu tempo vivo, confiei como tais:
- Esse aí não canta mais!.. Dizia o vizinho, provável vítima de minha futura obsessão.
Não obstante, pessoas chegavam para prestar os pêsames à minha família ou rir de minha cara morta. Tião, companheiro de todos os anos de polícia, contava anedotas aos colegas da instituição. Um policial militar, também conhecido, com a boina ao peito, orava diante dos meus restos mortais. Minha namorada, divorciada de trinta anos, desequilibrada, berrava como louca. Até alguns que, desencarnados graças à minha vontade e ajuda em passagens, ou desejavam carregar, eu em espírito dali, ou apenas foram para me constatar. Os obsessores, mais enfurecidos, eram contidos pelo exu malandro, de quem fui cavalo fiel e subordinado durante toda à vida, sem nunca faltar com as minhas obrigações para com ele. Entrou e se acomodou na capela o empregado obeso, barbudo, sem camisa, de trinta e oito anos. Os encarnados não o viam. Só eu e pronto!
Eu aproveitava o decorrer de minha última festa, até que surgiu uma labareda, como num ponto de fogo, na qual abriu-se uma porta, e dela saiu mamãe, nua como havia se ido, soltando sangue pelas narinas e enxofre pela boca:
-Venha em direção ao verdadeiro amor, meu filho!
Dei três passos para trás, ao passo em que ela me chamava:
- Venha, venha para esse abraço materno!
- Satanás!.. Siga reto de mim!.. Fechei os olhos com uma cruz e ela tomou distância.
Minha mãe, pelada como foi à eternidade, aquietou-se e observava-me olhando vovó Dora Maria, chorando, ao lado do vovô paterno. Aí uma dúvida assustadora me veio:
- Como vovó está aqui se já morreu há mais de quinze anos?
- Ela não aceita, meu filho! Mal o vê assim: como eu o enxergo espírito suicida. Pensa está entre os encarnados, ainda casada com meu sogro. Nem consegue sentir-nos aqui presentes.
- Mas dizia ser médium quando viva!
- Perdeu sua sensibilidade no instante em que renegou o mundo espiritual. Siga-me, filho! Onde estou há fogo, chuva, lodo, uivos, gritos, ódio, desespero. Vamos?
Eu me recostei à uma parede e vi um casal bem à frente. Aproximei-me e pensei: -“ continuação”! Daí, respondendo à indagação de minha genitora, acomodei-me ao meio de Dora - minha filha chorosa - e seu jovem marido. Então, a respondi, sorrindo aos dois:
- Não mãe, ainda tenho as minhas missões aqui!