Fomos soldados no vale da sombra da morte

Viviam-se tempos negros, talvez os piores da nossa existência, tempos de sacrifício, a obrigar ao sacrifício maior: o de sairmos das nossas casas e de pelos nossos darmos o que tínhamos de mais sagrado, as nossas vidas, de preferência acompanhada pelas almas; mas isso era de todo impossível, porque os corpos deveriam estar lá, no local do sacrifício supremo, ao passo que as almas, essas deveriam ficar na companhia daqueles e daquelas que deixamos para trás. E esse lugar estranho, irreal, onde nada, a não ser os seus habitantes(e que a política tornou nossos inimigos) e o caos subsistiam. Fomos assim enviados contra a gente do caos, para semear nessa terra danada mais e mais mortes, mortes sem fim, cujo fim seria perpetuar nos nossos lares a ordem e naquela terra esquecida a desordem, porque ela era demasiado estéril para cultivar o que quer que fosse, a não ser a guerra, sendo que os nossos modelos políticos nunca lá vingariam, ao contrário do que pensavam os políticos, verdadeiros e cegos artífices de mais este devaneio militar. E no dia que lá chegámos, antes da grande matança, tudo era aparentemente belo, o sol brilhava, as sombras até pareciam muitas, sendo acompanhado por uma suave brisa tonificante, a aligeirar a paisagem montanhosa desértica, prelúdio de um autêntico inferno, cujo tom seria dado dai a pouco, quando os guerrilheiros das grutas saíram dos seus abrigos e nos recordaram a razão do nome daquele estranho local, nos recordaram a razão de por lá terem passado alguns dos mais poderosos exércitos da história para de lá saírem derrotados, todos, sem excepção, derrotados sucessivamente pela história e pelos habitantes deste nada e que por ele lutavam com a convicção daqueles que nada teem a perder. Então porque é que nós deveríamos ser diferentes dos nossos “ilustres” perdedores? Porque tínhamos a ética e uma forma de razão do nosso lado? Porque como aliados dispúnhamos da mais avançada tecnologia? Mas de certa forma os anteriores derrotados no seu tempo também dominavam a tecnologia e também pensaram ter a razão do seu lado...Tantos porquês ainda, mas incapazes, no entanto (tal como os nossos GP’s, satélites, visão nocturna, armas avançadas e a tal razão, a eterna causa da providência divina a acompanhar os pré-vencedores e futuros pró-derrotados-) de os convencerem a baixar as armas e de aderirem assim a nós, os mestres, os profetas da aldeia global, a religião suprema deste início de milénio. Eles eram pois a última excepção ao globalismo planetário, a incómoda excepção à regra, seres únicos que teciam as suas próprias regras. E foi assim que deixámos as nossas famílias e conforto de primeiro mundo para trás, para nos embrenharmos no quarto, com a promessa duma vitória breve e fulminante e, como era apanágio das guerras modernas, de baixas residuais, pois as lágrimas das poucas viúvas e órfãos seriam incapazes de suster a torrente vitoriosa da vitória já adivinhada por todos. E foi assim que nos tornámos em guerreiros duma guerra eterna, porque mal foram disparadas as primeiras balas o pesadelo não teve fim, porque a seguir aos nossos mortos, a seguir ao facto de num super-exército terem sobrevivido apenas um punhado de homens, os políticos, os generais que lhes serviam de capacho e o mundo se terem obstinado, nos ter de lá tirado, chamado pomposamente de heróis, nos ter carregado de medalhas e silêncio, para depois lá enfiarem mais e mais homens, de forma a perpetuar a sua ilusão de vitória e de domínio, pois apesar de todos sermos orgulhosamente democratas a maldita excepção teria de ser incinerada para o bem da globalização comum. Voltámos pois moribundos, gastos, terrivelmente mais velhos (na guerra o tempo passa mais depressa do que em qualquer outro local pela vertigem dos acontecimentos e das sensações que os acompanham) e também voltámos menos humanos, pelas desumanidades que vimos e perpetramos em nome daquilo que ao fim ao cabo não era nada.

Fomos soldados no vale da sombra da morte

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