A porta
Quando ainda criança, fui sorteado entre um grupo de alunos, para colocar-lhe na cova adubada. Era tão frágil e pequenina! Parecia-me assustada com as palmas calorosas que recebia. Era a ilustre homenageada. Agradecia com um balançar de folhas tenras e ralas. O sorriso estava estampado no rosto de cada participante e também entre o seu verde infantil. A sua fragilidade fora escorada com estacas para que não envergasse o novo tronco. Todos despediram e eu por último, não queria deixar-lhe sozinha. Eu via até uma lágrima traiçoeira brotar nos seus olhos para não dizer nos meus. A melancolia fora vencida pela promessa de voltar no amanhã cedinho logo que o dia clareasse. Com passos vagarosos e olhar lânguido, fui me afastando até perder sua figura de vista.
Antes mesmo da hora indicada, lá estava eu a papear com você. Todos os dias, minha primeira tarefa, era umedecer seu caule com a água límpida da bica. Lembro-me que ela caía fininha e sem pressa. Eu também não tinha pressa. Nas horas de folga ficávamos num diálogo mudo. Queria lhe proteger do sol quente e das formigas famintas à procura de alimentos frescos. Você era cortejada por elas.
Um dia, quando cheguei todo eufórico para contar-lhe o meu sonho com a minha cinderela, você tremia de frio e mal dava conta de chorar. Sim, você chorava. Eu sentia isso. Levaram quase todas as suas folhas. Algumas sobre o solo indicavam o caminho das cortadeiras. A salada das malandrinhas, naquele dia, fora farta. Você estava arrasada. Apenas um broto teimava em dizer que estava disposta a viver. Cuidado redobrado e em poucos dias, nova roupagem. Para a façanha não se repetir, fiz uma caça aos formigueiros. Não mais molestaram você. O tempo passava...
Crescemos amigos e em parceria. Eu cuidava de você e recebia o conforto de sua sombra nas horas de lazer e estudo. Acompanhei o João de barro a fazer sua casa entre seus galhos. Até nasceram outros Joãozinhos. Você parecia gostar de nossas companhias. Éramos felizes mas, chegou o dia de separarmos. Havia sido aprovado no vestibular. Teria que partir para no futuro ser o seu defensor. Um defensor da natureza.
Fui despedir-me de você com a promessa de todas as férias, fazer-lhe muitas visitas. Assim foi. Elas aconteceram com freqüência e por vários anos. Formei-me mas, fui para uma outra região e não a sua. Cada vez que olhava para uma aroeira a saudade apertava. Todas as aroeiras pareciam ser gêmeas com você.
Logo que surgiu a oportunidade embarquei-me de volta. Queria confabular-me com você.
Cheguei de noite e mesmo assim fui lhe abraçar. Curiosamente percebi algo estranho. Tudo diferente. Por momentos não queria acreditar nas minhas suspeitas. Preferi aceitar a idéia de ter errado o local. Procurei-lhe por todas as redondezas, não o encontrei. Minha alegria foi dando lugar à tristeza. Uma construção nova e enorme se destacava no lugar. Aproximei-me e perguntei ao zelador pela frondosa aroeira. Um dedo magro apontava para o telhado da casa. Havia sido transformado em madeira. Eu não queria acreditar naquilo que escancarava na minha frente. As portas também eram da mesma madeira. Fiz um carinho numa delas e lamentei:
"Com o meu curso escolhido para proteger a natureza, não consegui lhe proteger. Ah, se eu pudesse devolver-lhe a vida."
Senti que chorava junto comigo mas, choro não devolve vida.
Juraci Oliveira
Pirapora, MG