A Viagem e o Caminho - D’o tempo.
O mundo imenso, incomensurável de tamanho e forma, redondo como uma bola, tem a necessidade de se fazer andar, rodar, tornar, posto é este o seu dever; de dias e noites, tardes que as sejam, para o tempo bramir junto ao assobiar do vento...
São em horas destas, de pensamentos os quais os ventos ecoam, é que se apercebe o tamanho da eternidade; em verdade, não me devo arremeter a estes devaneios difusos dos quais os tolos se perdem, principalmente em momentos de lembranças quais estes, Se não o deves meu filho... Veja esta criança, cuja mãe em colo a carrega. Com os seus exatos 12 meses, adoentada a pobre. Mal pisca, está ardendo, e ainda não se sabe o que é. Ao menos a família possui algumas posses, algum dinheiro, a pode levar, esta pobre menina, ao médico de carro. Um carro nem muito grande, nem muito pequeno, um pouco sujo que o seja, mas anda e afinal, por que aqui devo estar? Tudo bem, compreendo agora a necessidade, a eternidade define esta menina aos meus tempos, Então, então nada horas!
Ainda sim me punge em dores vê-la neste estado. Sua família não é abastada, mas também nada lhes falta. É pretinha a menininha. Lembro-me quando há uma semana antes ela brincava sã, de andar. Com passos fracos e nervosos, sempre por ao cair, olhando e se sustendo na mãe débil por a seguir; a criança sempre tendo o pescoço para cima, lépida. De lépidos passos, agora neste carro, o qual bem poderia ir mais rápido não? São já perto das dez horas da noite, a noite tarda, é fria, talvez por isto ela esteja doente. Pelo frio, Não culpes o tempo, e a quem culparei? A mim? A ela? A ninguém; não há culpados nem porquês no tempo. Tu já o sabes. Sim, é certo. Ah que cansaço! Não suporto isto!
Vejo este o carro sacolejar bastante, a mãe trepida em meio aos buracos da cidade. O pai, homem negro vestido às pressas, parece afoito, olha bastante para trás, no ver se todos estão bem. O carro voa, pára e segue pelo semáforo passado, sorte o trânsito desocupado; talvez quando mais tarde eu houver nascido lembre-me deste fato, Dificilmente.
Das cores. Ah as cores... A cidade em volta reverbera intensamente; os bêbados, as mulheres soteropolitanas, belas; os trabalhadores tornando do trabalho, e o carro rastejando por entre as estradas de forma como uma cobra; aliás, carro nem de muito rico ou pobre, meio velho que o seja, no entanto o serve e bem. Ela, a mãe, minha também, E já, sim horas! Ela de vestido estampado, azul e vermelho, de tempos em tempos olhando para a pobre irmãzinha minha, Vejo o seu entendimento. E as cores.
As cores da cidade, indo de fora para dentro, da cidade à família, tocando-nos em frisson. Os vidros sem aquele preto de nome a mim desconhecido permitem o amarelo de fora penetrar até nós, por sobre a menina de jovens olhos, pequeninos entre abertos, os cabelos da mãe desgrenhados por sobre o colo, não na menina; posto não o sendo muito grande.
-Já chegamos? Que olhos turvos!
-Ainda não, está tudo meio engarrafado. Ele nervoso, mentiu, no quase sussurrando Ainda não. Mordendo os beiços. Ela tentando fazê-la dormir, a nenê impassível, mirando-me, ou mesmo às cores da cidade perdida, absorta; as quais por vezes fazem o interior ficar escuro, e noutras totalmente claro; ela pisca a cada vez do escuro e do claro; um claro amarelado, das cores da cidade.
Tento acariciá-la, chegar-me à mãe, ou as duas, e quando o faço ela gira a cabeça, de gesto negativo, talvez para mim, ou mesmo para a menina, de forma aturdida. Sinto-me inaudito por isto, verdadeiramente invisível, Calma meu filho, é esta a hora da paciência e da benevolência. Pergunto-me sempre porque ouço-vos. Que o seja.
-Chegamos? No São Rafael? O plano cobre?
-Sim, sim.
Sei que eles felizmente são médios. Nem ricos nem pobres. Vejo e vi, quantos sofrem por plano de saúde não terem, a morte batendo na porta, os médicos intransigentes, os enfermeiros raivosos; deles apenas considero como pouco culpados; sobras do governo, do baixo salário, da vida de nenhum desejo; sem contar os meus irmãos órfãos, sozinho fracos, largados no mundo sem família alguma que a fosse, solitários em meio uma constante espera, se uma dia os alguns parentes encontrar, e a isto se entregam, no sempre ficar.
E aqui fiquei. Por que do lado de fora? É melhor ficar-te por a cá, meu bom filho.
Duma coisa o esquecimento jamais se dará mesmo na porta, sem dentro das salas poder seguir, sem vê-la poder melhorar, ou piorar; piorar até morrer considero difícil, e em verdade peço a Deus que isto não se dê. Rogo que não.
E que ela melhore. Mostrando-se aos seus por de novo sã, mesmo que a demore. E nisto, novamente as vejo, as luzes, o distante e nebuloso semblante da mãe, de cabelos negros, do corpo retornando a jovialidade do pré-filho, negra mulher de pele um pouco mais clarinha que a do marido, de frisar perdido, tendo o peito junto à menina, singradas pelas luzes da cidade em fulgor da noite, de provável sexta, d’um fim de semana em Salvador. Luisa segurando em regaço o pequenino corpo febril da criança, o pai a estacionar repentinamente sob um lúgubre poste de luz, amarelo fraco surgindo em meio a noite de outono.
Saindo dele, quase me esquecem no banco traseiro, levanto-me e fico agarrado à saia de Luisa; tendo ela fixo o fitar em Daniel; e espero.
Sento no banco, do lado de fora do atendimento, o hospital grandioso em suas alas. Fico a me perguntar o por quê das lembranças serem tão esbranquiçadas neste ponto, às enfermeiras, às pessoas, às macas adentrando os corredores quais lá também ia a pequenina menina, cujo nome apenas recordei por agora. Judite.
Depois desse acontecido, parti para nascer e ser criado por uns parentes deles muito distantes. Fui para Itaparica d’onde conheci o tempo e sua eternidade, os mares tranqüilos de ondas vagarosas, pouco espumosas e de sujeira. Paraíso onde fiquei até o tardar da infância. Voltei a Salvador aos quinze anos e o tempo transmitiu o futuro. Minha juventude em menino, criança ainda nadando em plenas águas do mar. O sol ascendente sobre o trabalho esperando a minha chegada, de quando dele eu fugia; ficava à porta do casebre, a velha mulher a qual me criou, Lembra-se dela, um pouco. Muito em verdade. Acordava-me ao raiar em principio, logo eu mesmo o fazendo, ainda ia mais cedo, pra ir deitar sobre as ondas tênues de mar, telúricas na madrugada; primeiro, no caminho, os pés descalços correndo no chão de terra e pedras, tendo mais terra por obvio. Depois vinha-se a areia e por fim, voltava ao trabalho; A qual perguntou-me, da velha, não me prontifico responder mais, perdão.
Por isso, a mãe única em minhas lembranças, nem mesmo a genitora delas brota. Afinal quem era, Digo-te filho, ficou-a simplesmente ao tempo e à vida, posto por ele, a tua mãe de gestação vive, ou viveu. É a eternidade.
Mas dessas lembranças realçam as cores, o raro trepidar sentido por mim do carro, julgado imenso pelo balançar de Luisa presa a pobre menina, tal uma torre é encravada no chão, para alicerçar o todo na construção. No fundo era ela a união da família.
E qual mulher não o é?
Minha mãe... Mesmo tendo a sido por escasso tempo, sinto como muito a tivesse. É o tempo fazendo e tornando de necessária, a mudança, que em verdade é a única via.
De a pouco, ou duas horas, Luisa volta, olha-me como se não visse; rancorosa jamais, digo melancólica mesmo; a menina ficara bem, passou-se um dia inteiro lá; comeram, descansaram e finalmente partimos. Judite e eu não crescemos juntos pelo o já contado, e também, o tempo fez-se quando nos reencontramos. E nada de mais há a relatar sobre o resto; em mim por isto, não existe o menor desejo de fazê-lo. Entre nós nunca ficou aparente a diferença de idade, a vi nascer, a mãe gritando, o pai sentado, imóvel, indolente, impávido como uma cordilheira de rochas, d’uma esquecida praia. Dizia-o para levantar, bradando no seu ouvido, ou mesmo pensava em fazer na minha quietude; e ele apenas na cadeira da maternidade. Frisava-me unicamente. Ao menos o penso que o fazia.
E Judite? Ela cresceu; disseram-me que sempre foi meio doente, e deve tê-la sido. Assim é o tempo, o qual tem como dever executar o ponto que nos cabe e delimita. Se desse jeito não o fosse, a eternidade se perderia, jamais sendo uma sucessão de acontecimentos feitos para alcançarmos, subirmos até o Alto. Repetitivos e repetidos, os quais os forem. Que os sejam! E daí o motivo de andar em vês de correr. Posto andar é harmonioso, correr é desnecessário.
Depois do todo, fica em minha mente o deitar da menina pequena nos braços cálidos da mãe, tendo por sobre ambas o marcar das cores, de amarelo fosco, enegrecido pela noite, forjadas pelas luzes das casas, dos bares, dos carros; sobrevindo até nós, tocando-as, iluminando-me, unindo à ânsia da melhora e a volta para casa. Ah, a volta;
E as cores.
-Agora vá; acorde com Deus meu filho.
-Até a volta, Espírito D’o Tempo...