Angelina

A senhora passeia com seu cachorro poodle, o olhar distante, a estrutura pomposa, com suas roupas caras, seu salto alto, as unhas bem pintadas, um colar de ouro e um choro preso para não borrar a maquiagem. Ela passeia pela vizinhança, o nobre bairro do Batel, organizando em sua mente, cronologicamente, a seqüência de fatos (segredos) que há muito esconde. Hoje à noite é chegada a hora do tiro de misericórdia.

“Angelina, Por que você guarda tantas mentiras?” ela pergunta a si mesma.

Angelina, 55 anos, olha para os rostos à sua volta enquanto assobia a famosa canção de Doris Day, “Que sera sera”, e imagina que esse é o tipo de momento em que as coisas costumam se passar em câmera lenta. Mas o que Angelina vê e sente passa rasgando por ela, tão depressa que seu corpo estremece e uma súbita dor de cabeça se instala por de baixo de seu chapéu importado.

Ela pára, senta-se num banco e concentra-se apenas em respirar. Sua respiração é lenta e contínua. Ela olha no relógio, 18h42, e levanta-se. É chagada a hora, o marido estará em casa em 18 minutos.

O caminho de volta para casa é difícil, de repente tudo é mais difícil. Mas ela conclui o caminho. Atravessa o portão de casa, deixa o poodle nos fundos, entra direto na cozinha e serve-se de um drink. Senta-se às escuras na sala de jantar.

Ouve-se o barulho do abrir e fechar da porta. Angelina permanece inerte.

- Oi Angie – diz o marido em tom assustado ao ver a esposa no escuro. – Está tudo bem?

- Está sim. Eu estava lhe esperando.

- É? Por quê?

- Porque quero conversar.

- Pode falar então.

- Não. Não assim. Tome um café antes. Quem sabe um banho também. Estarei lhe esperando.

- É alguma coisa séria?

- Depende do ponto de vista.

- Como assim?

- Estou apenas brincando. Agora vá tomar um café. Deve estar com fome.

E o marido foi... com um olhar ao mesmo tempo misterioso e alerta.

Angelina permaneceu inerte.

- Pronto, já comi – diz o marido ao voltar da cozinha com o mesmo olhar. – Banho eu tomo depois.

Ele então puxa uma cadeira e senta-se a mais ou menos um metro de distância da esposa.

- Estou lhe traindo – diz Angelina com pouca, ou nenhuma, expressão.

- O que? Como?

Silêncio.

- Há quanto tempo? – pergunta o marido.

- Desde que nos casamos – responde Angelina enquanto acende um cigarro.

- Como assim “desde que nos casamos”?

- A primeira vez foi na nossa lua-de-mel. Depois, diferentes ocasiões, diferentes homens. Ao longo desses trinta anos.

- Mas como? Eu não...

- Não interessa os detalhes... Pelo menos eu acho que não mais.

Segue-se uma troca de olhares. O marido, então, se levanta e começa a andar em círculos.

- Eu realmente não sei o dizer – diz o marido com a voz falhada. – Por que está me contando isso agora?

Pela primeira vez, naquela noite, Angelina desvia o olhar de seu marido e então diz: - Não sei... Ah...

- Acho que não precisamos de mais mentiras.

- O seu exame.

- Como? Mas eu nem lhe disse o resultado ainda.

- Eu falei com seu médico por telefone hoje – diz Angelina, voltando o olhar para o marido. – Não pude esperar até que retornasse para casa.

- Ah...

Silêncio. Frio e aterrorizante

- Bom... E agora? – diz o marido sentando-se novamente. – O que você quer que eu diga?

- Não sei – diz Angelina ainda sem demonstrar expressão. – Eu certamente não espero que me perdoe.

- Você me perdoaria?

Angelina desvia o olhar, abaixa a cabeça... E o silêncio novamente toma conta do lugar.

- Acho que a pergunta “fomos felizes?” não teria sentido, não é? – diz o marido com uma risada boba. – Você me traiu durante toda nossa vida de casados.

- Olha, eu realmente amo você. Verdadeiramente. Eu não sei explicar o que aconteceu nesses trinta anos. Mas não tem nada a ver com você. O...

- “O problema sou eu”. Todos dizem isso. Imagino que agora tentará me persuadir de que você precisa de terapia.

- Não quero e não preciso te persuadir. Eu só precisava te contar o que eu tinha para contar.

- Isso é egoísmo, sabia? Você não acha que eu ficaria muito melhor sem saber de nada? Afinal, segundo o resultado do exame eu...

- E eu poderia conviver com isso para o resto da vida! – diz Angelina em tom irônico.

- Até ontem não tinha problema algum! – responde o marido no mesmo tom.

- Eu sei que você me entende, então não preciso ficar me explicando.

- Eu, realmente, sempre pensei lhe entender. Fosse pelo olhar, fosse pelo tom de voz. Mas agora...

- Nada mudou – diz Angelina, agora mostrando um pouco de ternura. – O que acontece é que nós nunca tocamos no assunto. Sei que não conseguiria escapar se alguma vez tivéssemos falado sobre isso.

O marido chega a abrir um sorriso, mas dura pouco. Ele, então, sai de cena e Angelina, sozinha no escuro, solta uma lágrima.

O marido volta alguns minutos depois com uma arma na mão. Pára atrás da cadeira em que estava sentado e fica balançando a arma com as duas mãos. O olhar perdido, o pensamento distante. Angelina termina seu drink, joga o cigarro dentro do copo e lança para o marido um olhar ao mesmo tempo interrogativo e desiludido. O marido volta a si e aponta a arma para a própria cabeça.

- Você não precisa fazer isso – diz Angelina, inerte e sem nenhuma expressão.

Silêncio.

- Você tem razão – diz o marido, agora apontando a arma para esposa.

Silêncio...

Disparo.

O marido, então, puxou novamente a cadeira e sentou-se de frente para a esposa morta. Ficou a observar o sangue escorrer. Por entre os olhos, a boca, o pescoço...

Depois seguiu para o banheiro e tomou um demorado banho. Vestiu sua melhor roupa, atravessou a casa em passos lentos, alcançou o telefone da sala de estar e ligou para a polícia. Confessou o que fez e aceitou sua sentença.

Achava que não havia com o que se preocupar. Não tinha filhos. Nenhum parente próximo. Não havia mais ninguém. Ninguém para sentir sua falta ou que dependesse de seu amparo.

E além do mais, havia, também, o resultado do exame...

Gabriel Villas Boas
Enviado por Gabriel Villas Boas em 24/01/2009
Código do texto: T1401317
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