AS PRIMEIRAS LEMBRANÇAS
As árvores cobriam o caminho, deixando que o luar atravessasse as brechas entre a folhagem e formasse belíssimos desenhos na areia branca da beira do rio, que mais parecia uma renda daquelas que Sinhá Porcina fazia na sua almofada de bilros e que eu tanto admirava.
E eu me encolhia toda com medo das almas penadas que pudessem estar no mourão da velha porteira que dava passagem na cerca de arame farpado que dividia as terras dos "Davi" e dos "Cabeludos", como, também, por trás do velho tronco de cajueiro que extremava as duas terras, e nos galhos recobertos com pimenteiras (pés de pimenta-do-reino, que enroscavam-se em toda a extensão do cajueiro) e procurava ir sempre no meio da fila indiana que se formava devido a pequena largura dos caminhos que ligavam os pequenos casebres caquele lugarzinho aconchegante, pelo menos para mim, que reunia seus moradores no meio da "rua" de casas esparçadas - o caminho principal, que servia aos tropeiros viajantes e aos feirantes que se deslocavam dos pequenos lugarejos para as cidadezinhas mais próximas em dias de feira, e, se noite de luar, contavam piadas picantes que eu mal entendia, ou não entendia nada. Contavam-se histórias de lobishomem; de mulas-sem-cabeça, das quais saía um fogo enorme do pescoço, e que seriam almas penadas de mulheres que tiveram algum caso amoroso com padres; da "cobra preta", um demônio em forma de cobra que atacavam as mulheres e as engravidavam (sempre mulheres casadas nas quais o marido depositava inteira confiança); da "caipora", que tinha de ser chamada de "dona fulôzinha" e que tinha-se que oferecer-lhe sempre uma "peia de fumo" para que ela não surrasse o caçador com os seus longos cabelos, sem que ele pudesse vê-la, e, portanto, sem nenhuma defesa possível, epermitisse que o mesmo adentrasse o mato onde pretendia caçar sem a sua intervenção.
As histórias iam sendo desfiadas noite adentro. Quanto mais pavorosas, mais emocionante. Mas, ao sair dali, nenhuma das crianças queria ir atrás ou à frente da fila. E, arrepiadas de medo,não olhavam nem para trás nem para os lados. Mudas de terror.
Ao chegarem em casa, as crianças mal jogavam um pouco d'água nos pés para tirar o excesso de areia, jogavam-se na velha rede, já armada, e cobriam-se da cabeça aos pés, com o velho lençol engendrado com dois sacos de algodão cru, daqueles que serviam para o transporte do açúcar que era vendido a granel (100, 200, 300gramas, meio quilo...) e que era mais encorpado do que o saco de sal ou de bacalhau, fechavam os olhos com força e tentavam dormir o mais rápido possível para fugir ao terror às personagens mitológicas inculcadas às suas mentes jovens pelos mais antigos. Sonhavam com monstros míticos que se modificavam, fugindo à sua originalidade, ao lhes serem acrescidas as partes que aquelas mentes jovens e criativas lhes davam durante o sonho.
Mas, amanhã seria outro dia! E o sol, certamente, espantaria todas as imagens monstruosas que a noite trouxera.
Rosa Ramos Regis - Natal/RN - 2005.
As árvores cobriam o caminho, deixando que o luar atravessasse as brechas entre a folhagem e formasse belíssimos desenhos na areia branca da beira do rio, que mais parecia uma renda daquelas que Sinhá Porcina fazia na sua almofada de bilros e que eu tanto admirava.
E eu me encolhia toda com medo das almas penadas que pudessem estar no mourão da velha porteira que dava passagem na cerca de arame farpado que dividia as terras dos "Davi" e dos "Cabeludos", como, também, por trás do velho tronco de cajueiro que extremava as duas terras, e nos galhos recobertos com pimenteiras (pés de pimenta-do-reino, que enroscavam-se em toda a extensão do cajueiro) e procurava ir sempre no meio da fila indiana que se formava devido a pequena largura dos caminhos que ligavam os pequenos casebres caquele lugarzinho aconchegante, pelo menos para mim, que reunia seus moradores no meio da "rua" de casas esparçadas - o caminho principal, que servia aos tropeiros viajantes e aos feirantes que se deslocavam dos pequenos lugarejos para as cidadezinhas mais próximas em dias de feira, e, se noite de luar, contavam piadas picantes que eu mal entendia, ou não entendia nada. Contavam-se histórias de lobishomem; de mulas-sem-cabeça, das quais saía um fogo enorme do pescoço, e que seriam almas penadas de mulheres que tiveram algum caso amoroso com padres; da "cobra preta", um demônio em forma de cobra que atacavam as mulheres e as engravidavam (sempre mulheres casadas nas quais o marido depositava inteira confiança); da "caipora", que tinha de ser chamada de "dona fulôzinha" e que tinha-se que oferecer-lhe sempre uma "peia de fumo" para que ela não surrasse o caçador com os seus longos cabelos, sem que ele pudesse vê-la, e, portanto, sem nenhuma defesa possível, epermitisse que o mesmo adentrasse o mato onde pretendia caçar sem a sua intervenção.
As histórias iam sendo desfiadas noite adentro. Quanto mais pavorosas, mais emocionante. Mas, ao sair dali, nenhuma das crianças queria ir atrás ou à frente da fila. E, arrepiadas de medo,não olhavam nem para trás nem para os lados. Mudas de terror.
Ao chegarem em casa, as crianças mal jogavam um pouco d'água nos pés para tirar o excesso de areia, jogavam-se na velha rede, já armada, e cobriam-se da cabeça aos pés, com o velho lençol engendrado com dois sacos de algodão cru, daqueles que serviam para o transporte do açúcar que era vendido a granel (100, 200, 300gramas, meio quilo...) e que era mais encorpado do que o saco de sal ou de bacalhau, fechavam os olhos com força e tentavam dormir o mais rápido possível para fugir ao terror às personagens mitológicas inculcadas às suas mentes jovens pelos mais antigos. Sonhavam com monstros míticos que se modificavam, fugindo à sua originalidade, ao lhes serem acrescidas as partes que aquelas mentes jovens e criativas lhes davam durante o sonho.
Mas, amanhã seria outro dia! E o sol, certamente, espantaria todas as imagens monstruosas que a noite trouxera.
Rosa Ramos Regis - Natal/RN - 2005.