HERÓIS - Parte II -
Não é necessário que erijam impérios, ou que os destruam, não é imperativo que salvem almas ou vidas, não é fundamental que cometam feitos imensos para não ser esquecidos. Muitas vezes basta serem eles próprios para ganharem a imortalidade da nossa memória.
Já passaram tantos anos e muitos mais se irão passar, no entanto, e apesar de ter partilhado a sua vida num espaço relativamente curto, jamais o esquecerei, jamais esquecerei a sua enorme e notável lição de vida.
Lembro-me em particular do seu olhar e da voz, ambos duma calma transbordante, a calma dos sábios.
Era um homem entre tantos outros, indistinguível numa multidão, um entre milhões que ajudaram a escrever a história do mundo, sem que este fixasse o seu nome ou memória, deixando essa nobre tarefa àqueles que lhe estavam mais próximos.
Ele e os meus pais foram as primeiras vozes que me envolveram quando os medos da infância lá estiveram para a assombrar, afastando-as, protegendo-me até que as minhas defesas estivessem mais seguras ao ponto de depender menos deles. São deles as primeiras histórias lidas nos meus primeiros adormeceres, mas a sua ausência actual faz com que o sinta mais intensamente do que aqueles que ainda estão vivos. Talvez por isso , a sua voz docemente grave e uns olhos onde morava uma infinita bondade, a concentrarem-se ora no livro, ora em mim, vem do fundos dos tempos para me recordar que ele ainda por aqui está, porque ainda o recordo com esta intensidade. Foram dele também as primeiras caminhadas pelos pinhais, em tardes imensas de companheirismo, mas que a memória sovina apenas me deixou pequenos pedaços....Enormes e deliciosos momentos, entalados nas visitas de fim de semana, ou apenas nas poucas férias passadas por mim na sua aldeia natal. Esses momentos na altura não me pareciam propriamente nada de especial, porque na altura a minha idade e imaturidade não mo permitiam, e se hoje o sinto é porque a memória teve o dom de os preservar e fazer amar.
Lembro-me de episódios esparsos e da sua reacção, lembro-me da sua rotina no final dum dia de amanho duro dos campos, da sua enorme paz interior que nunca mais vi em qualquer ser com aquela profundidade, a profundidade dos sábios genuínos embora tenha a sorte de ter conhecido um punhado apreciável de gente notável antes e depois da sua morte.
Lembro-me das suas maiores lições, risíveis à maior parte que me ouça ou me leia, mas duma importância quase sacrossanta para mim.
A primeira (que me lembre, pois há certamente mais, apagadas do consciente mas que guiam algum do meu subconsciente) aparece-me envolta no nevoeiro da memória, mas ainda suficientemente clara para a respeitar e continuar a seguir: numa tarde duma primavera perdida na minha infância acompanhei o avô numa visita às suas terras. Na ocasião decidira roçar o mato dum dos seus pinhais de maneira a diminuir a voracidade do fogo se este ( ou os homens que o instigavam...)tivesse a má ideia de por lá passear. Lembro-me que aquele homem de sessenta e tal anos se afadigava a alguns metros de mim contra o mato e me deixara momentaneamente entregue ao ócio e às ideias disparatadas que por vezes atacam quem se dedica a este tipo de actividade...Os minutos vazios transformaram-se em delírio quando os meus olhos encontraram um serrote na caixa de ferramentas, e se bem o vi, pior o pensei pois num espaço de segundos me encontrava a dilacerar o pinheiro mais próximo, até que uma mão pesada e uma voz dura me devolveram ao mundo; de rosto quente e lágrimas a quererem vir cá para fora, olhei para a origem da dor e vi-o a ele, pela primeira vez com uma expressão dura e algo sofrida a olhar para mim, enquanto segurava o utensílio que deixara cair. –“Cada uma destas árvores representa anos de trabalho, anos de sofrimento para as fazer crescer”, disse-me num tom duro e sem oferecer réplicas. Na altura calei-me pelo enorme respeito que tinha por ele, sem realmente compreender os ensinamentos da sua palavra, mas senti que a bofetada entretanto esfriada lhe custara mais a ele do que a mim. No caminho não falámos no assunto, aliás, nunca mais falámos dele, e eu nunca mais cortei uma árvore ou agredi um ser vivo sem razão.
Anos mais tarde soube que, muito tempo antes de nascer, o avô andara por terras francesas, onde ajudou a reconstruir o país das feridas da guerra a que Portugal escapara por ser não beligerante. Passara esse tempo com uma enxada no amanho das poucas terras familiares ao invés de ter pegado numa arma e ceifado vidas que amava tanto. No entanto, quando a paz beijou o continente a miséria que nos atacou obrigou-o a partir durante vários anos para alimentar a família que entretanto nascera da união com a minha avó. Os anos de ausência e saudade permitiram que os meus não passassem fome e até que comprassem mais algumas terras. Terras onde se incluía aquele pinhal, terras de suor sangue e lágrimas da enorme saudade daquele homem, cujo maior castigo era afastarem-no de quem amava, e que por eles se sujeitara a essa provação.
Também foi ele que me ensinou a amar as palavras, uma das suas lições mais queridas pela gama quase infinita de perspectivas que me abriu. Com a primária acabada e lançado na vida do trabalho porque esta não lhe permitira seguir os livros, ocupava as poucas horas livres a ler, a ler qualquer coisa, desde que lhe desse algo, lhe ensinasse algo, e lhe permitisse ensinar. Era e foi pois um autodidacta, mas também criador, pois dos livros tirava ideias que alimentavam as suas ideias, sendo um dos resultados desta feliz união pequenas máquinas criadas por si para auxiliar os seus trabalhos. Eram máquinas simples, onde só ocasionalmente morava a electricidade, mas aparelhos notáveis por essa simplicidade, pela eficácia e por terem saído da mente deste homem de permanente e doce sorriso. Sabendo que o meu amor pela mecânica era apenas um desejo seu, e adivinhando-me o carinho pelos livros por ele partilhado, deixou as invenções para si ou para outro neto ensinando-me a arte de amar esses livros, ensinou-me a perder o inominável acto de os dilacerar com desenhos, ensinou-me que as palavras sem desenhos são igualmente belas, por mil e umas razões mas também porque nos permitem imaginar livremente o que descrevem, sem a barreira (ou prisão...) pictórica já definida. Seria um milagre se tivesse parado totalmente com a bonecada, mas o que é certo é que diminui a tentação e quando lhe dava azo fazia-o a lápis, porque este é temporário e porque deixa o negro da tinta das palavras prevalecer. Ensinou-me também a procurá-las. Foi dele o meu primeiro dicionário e uma técnica oral infalível que ainda hoje aplico e que ensino a quem posso. Ao invés de me revelar o significado das palavras quando a dúvida me assaltava, obrigava-me a ir “à origem à raiz das palavras” e delas extrair o seu mistério. Ainda hoje não sei se era a sua alma camponesa em acção no reino das palavras ou o poeta que nunca chegou a ser no papel que o fazia olhar as coisas desta forma...que penso única, não sei nem nunca quererei saber pois isso faz parte duma parte dele que nunca cheguei a conhecer, mas onde adivinhava tesouros imensos que a sua mortalidade me impediu de saber. Procuro a ignorância de maneira a não lamentar ainda mais a sua ausência e o imenso que perdi quando a lei da vida no-lo roubou.
Apesar de ser um homem de imensos afectos, era reservado nas palavras, procurando transmitir os estados de espírito no olhar, e por isso jamais esquecerei o momento em que o visitei depois de ter publicado o meu primeiro texto, nos alvores da adolescência. Apesar da escrita ser criticável, o facto de ter superado a barreira da publicação encheu-o de alegria, que transmitiu num contido e imenso sorriso sem palavras, ao qual não faltava nada, no qual as palavras estariam a mais.
Anos mais tarde escrevi vários livros, e continuo a escrever, mas infelizmente só posso adivinhar a sua reacção, pois a sua estadia entre nós foi cruelmente abreviada poucos anos depois da primeira publicação.
E até na morte foi notável - Não descreverei os pormenores, pois a intimidade deve prevalecer até num fim, refiro apenas que resistiu sem se queixar, sem uma palavra de dor a uma agonia que durou anos, sem um queixume apesar de lhe lermos no rosto e nos sorrisos cada vez mais escassos um sofrimento raro, por vermos na sua postura cada vez mais curvada um fim que ninguém assumia que ninguém queria assumir e de que ninguém falou, até que o corpo se rendeu por fim num dia de verão, um dos verões mais quentes da minha vida, onde o suor se confundiu com as lágrimas que detestava deitar, mas que naquele dia foram plenamente justificadas.
Durante o resto da minha vida e até ao momento presente procurei seguir o seu exemplo, não o imitando, porque ninguém é imitável, porque se o fosse deixávamos de seguir as nossas próprias vidas, limitando-nos a transformá-las no prolongamento daquelas que admirámos, procurei dar aos outros aquilo que dele recebi, procurando honrar com isso o seu enorme e anónimo legado humano. Sei que estou aquém. Sei que sempre o estarei, mas a mera tentativa sei que faz de mim um homem melhor.
Noutros tempos, noutras vidas o avô poderia ter deixado o seu nome no futuro dos outros, com outras oportunidades sociais e escolares o seu espírito inventivo poderia ter gerado maravilhas insuspeitas, ou escrito obras duma beleza que nunca viremos a saborear, ficou a hipótese na cabeça de quem o amou, e ele ficou apenas na memória dos que o conheceram e daqueles que gerámos, fazendo-os olhar as fotografias daquele homem já distante pelo tempo, mas de histórias sempre presentes, dum afecto imortal, que me faz recordá-lo com uma saudade que jamais esmorecerá, que me faz pronunciar o seu nome adicionando com os lábios sem som a palavra herói o meu herói pessoal, o maior dos meus mestres, o meu avô.
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