***Alem do Véu***VII

Segunda parte

*Recordações*

Aqui no nosso condado continua o mesmo lugar sereno de sempre, o mesmo refúgio a tantas mulheres, por vezes vítimas de violência, ou não aceitação.

Faz dezessete anos que voltei; engraçado, às vezes parece que foi ontem, às vezes parece que foi há tanto tempo... Mas o tempo é mesmo algo enigmático.

Não me arrependo nem um dia sequer dos três anos que vivi em Rear, junto ao único homem que amei em toda a minha vida, um amor que foi capaz de superar tantas coisas que lá passei, só uma coisa não pude superar e foi por esse motivo que acabei voltando. Nesse momento em meu lugar preferido, na sacada sul da Casa Grande, me debruço no parapeito me recordando de tudo que vivi, da primeira vez que ele pronunciou o meu nome, bem aqui neste mesmo lugar, da primeira vez que discutimos, lembro ha... lembro bem. Quando há pouco tempo morava lá, naquele vilarejo tão humilde, tão carente, alguém me bateu à porta, corri para trocar minhas vestes e colocar o véu, porque me recusava a usar aquilo dentro da minha própia casa e fui atender, era uma criança, magra, de olhos famintos e pés no chão.

---Massá, (senhora), por favor, massá, o curandeiro, o curandeiro, por favor.

Fiquei assustada, pois a criança estava desesperada.

---Desculpe, mas Amir não está, posso ajudá-lo em alguma coisa?

---Mama, massá, mama. Dizia a criança me puxando pelas vestes.

Sem alternativa segui a criança, que corria e chorava, entramos em algumas ruas, atravessamos alguns becos, até pararmos enfrente a um barraco, onde do lado de fora era possível ouvir os gritos de uma mulher, a garota ou garoto não dava para definir, tão raquítico era, em desespero, meio que me empurrou para dentro da casa.

---Mama, ajude massá, ajude mama.

Ao adentrar o espaço entendi tudo, a mulher, mãe da criança estava em trabalho de parto, e não havia ninguém para ajudá-la exceto eu, como sacerdotisa tinha aprendido a respeito, porém, nunca havia feito um; imediatamente mandei a criança de volta a minha casa para buscar algumas ervas e poções que tinha trago de minha terra, logo em seguida passei a tentar ascender o fogão à lenha para esquentar água, a procurar toalhas, a procurar a água, minha deusa, cadê a água,?! Não tinha.

A mulher gritava o bebê não vinha, sem dilatação suficiente, tesoura, santa deusa, deus qualquer um, preciso de uma tesoura! Achei uma faca enferrujada, nada para desinfetar, se nem água tinha, esfreguei a faca num pedaço de pano encardido e fiz uma incisão, para dar passagem ao bebê, sangue, muito sangue, gritos, lágrimas escorriam de meus olhos, por fim o bebê nasceu.

Foi o momento mais tenso de minha vida, nunca antes me sentira tão perdida, tão assustada. Fiquei um tanto feliz ao ver que o bebê era um menino, pelo menos não estava condenado a sofrer tanto, pensei. A criança chegou com minhas ervas, mandei que me arrumasse água, a vida daquela mulher exangue ia depender de meus conhecimentos como sacerdotisa, a criança demorou mais do que eu esperava, quando chegou com a água, perguntei-lhe o motivo da demora.

---Fui buscar no riacho. Respondeu, estendendo-me o braço fino com o balde.

---Mas o riacho é longe, porque não pediu a um vizinho?

---Pedi, mas, não me deram.

Será que ninguém tinha água?! Mas não tinha tempo para ficar pensando, peguei a água suja do riacho, coloquei umas folhas de cado, um bactericida, mas também um veneno se não souber usar, misturei outras ervas e prestei todos os cuidados pós-cirúrgicos que foi possível prestarem, à mulher e ao bebê, então exaurida sentei-me à porta para descansar; somente quando a tensão passou e minha respiração voltou ao normal, é que olhei a minha volta, havia uma aglomeração de vizinhos diante mim, sorri-lhes disse:

---Está tudo bem, é um menino. Então lhes reparei os semblantes e não eram nada amistoso, sem entender olhei para criança junto à porta, que ao ver os vizinhos, arregalou os olhos entrando na casa e fechando a porta atrás de si, me deixando do lado de fora, os vizinhos foram se aproximando, bradavam em vozes alta, em seus dialetos que eu mal podia entender, percebi que uns estavam com chicotes nas mãos, outros me apontavam com fúria, levantei ainda sem entender, o que fizera de errado? Meus instintos diziam para correr, mas não havia como, olhei para a porta fechada atrás de mim, soquei-a com força, mas ninguem abriu, meu coração bombardeava desesperadamente, o que esta havendo? Pensei, mas palavra alguma saiu de minha boca.

sutini
Enviado por sutini em 22/01/2009
Reeditado em 08/02/2009
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