Expresso para o Sertão - Capítulo I

 
Quando deparei-me com o trem, que chegava aos poucos em Palmeira dos Índios apitando na linha, pensei se partir dali seria mesmo o melhor para mim. No vagão, observando a paisagem pela janela, eu desfrutava do prazer de viajar de trem ainda que nos “tempos modernos”. Poderia partir de ônibus, eu sempre preferi o trem. A viagem era um pouco mais demorada, mas ver o gado no pasto ou, por vezes, o solo de terra rachada, tremendo pela janela com o mormaço do sertão alagoano, era uma das formas mais amáveis de me despedir da minha terra. As horas a mais eram necessárias, visto que não me despedia do nordeste como quem dele não quer ver mais nada.
 
As pessoas continuaram a subir nos vagões, a cada parada do trem, em alguma estação. Normalmente pessoas muito simples, modestas, que partiam apenas para um outro lado do estado, naquela ocasião. Carregavam sacos de milho, feijão, doces, jerimuns e demais alimentos colhidos na terra. Geralmente eram trabalhadores de fazendas que embarcavam rumo à capital do estado ou para outras cidades a fim de visitar seus parentes ou em busca de algum trabalho melhor. Eu, ao contrário disto, estava certo de que de maneira alguma poderia continuar em Alagoas, apesar de ter o estado em meu coração. O meu destino era o Rio de Janeiro. Queria encontrar algum trabalho que me pagasse um pouco melhor.
 
Quando paramos na estação de Pilar, já próximo à capital alagoana, subiu uma bela moça que sentou-se próximo a mim, no outro lado do corredor. Enquanto arrumava sua bolsa, deixou cair no chão um batom que aproveitou-se da curva que o trem fizera para rolar até os meus pés. Imediatamente apanhei e o devolvi a humilde moça que me agradeceu sem nenhum interesse nem importância demasiada à casualidade do momento.
 
Continuei fitando-a e sem conter o encanto que tive por ela desde a hora em que entrara no trem e tratei de puxar algum assunto:
 
- Vai à Maceió?
- O que?
- Seu destino!
- Ah, estou indo a Maceió!
- Procurar emprego?
- Também. E seu destino, qual é?
- É lá também. Mas vou para rodoviária ainda hoje. De lá estou embarcando para o Rio de Janeiro.
- Oxe, e por que não pegou logo um ônibus de Palmeira, rapaz?
- Eu queria viajar de trem. Ia de ônibus direto, mas prefiro trem.
- Tem algum parente lá pra onde tu vai?
- Como?
- Tem algum parente lá pra onde tu vai?
- No Rio de Janeiro?
- É.
- Oxe, tenho nada! Tenho é por essas bandas daí de Maceió mesmo.
- E é?
- É, e você tem parente no Rio de Janeiro?
- Oxe, tenho não...
- E em Maceió?
- Não, não, é que gosto da cidade. Nasci lá... Minha mãe teve complicação no parto e levaram ela pra lá pra ver se me tinha... Mas a coitada morreu e ficou só eu e meu pai nesse mundão... Depois é que debandei pro sertão. Adoro cachoeira, não sabe? Tomar banho de açude...
- Sei como é...
- Será que aqui tem banheiro?
- Oi?
- Será que aqui tem banheiro?
- Pode ser que tenha lá atrás. Não sei. Nunca tive necessidades no trem.
- Eu vou olhar...
 
Ao levantar-se, o trem fez uma curva brusca na estrada de ferro e, desequilibrando a bela moça, fê-la cair em meu colo e só então é que pude conferir de perto a beleza do seu olhar castanho e dos cabelos negros como os de uma índia, escorrendo pelos ombros. Permanecemos assim anestesiados e olhando um para o outro durante uns ínfimos segundos que, para mim, pareceram uma eternidade... Mas levantando-se apressadamente, ela ajeitou-se e me disse:
 
- Ai, moço, desculpe! Eu não queria sentar no seu colo!
- Oxe, tem problema não, homi! Fique à vontade, pode sentar!
- É que eu sou moça de família, moça pura, não posso sair sentando assim no colo dos outros, não sabe?
- Oxe, uma sentadinha no colo, faz mal não... Pode sentar!
- Não! (em tom de segredo) Eu posso engravidar!
- Vixe Maria, mas só porque sentou no meu colo?
- Pois você não acredita? A minha avó engravidou do meu tio só porque sentou-se no lugar que meu avô esquentou enquanto estava sentado, visse?
- Pois eu digo que seu avô foi quem esquentou o lugar que fez sua vó engravidar! Isso é besteira, menina! Isso não existe não!
- Besteira nada... Minha vó, nessa brincadeira, teve quatorze filhos!
- Diabo de mulher pra gostar de lugar quente!
- Eu vou ao banheiro que estou apertada! E desculpe, moço, foi sem querer eu ter sentado no seu colo!
- Ei...
- O que foi, homi?
- Diga o seu nome!
- Erlinda.
- Erlinda... Muito prazer! O meu é Jacinto, a seu dispor...
- Ai, lhe cumprimento já...
 
Erlinda sorriu e saiu apressada para o banheiro. Trancou a porta, levantou a saia, baixou a calcinha e deu, enfim, um suspiro aliviado. Só então foi que ela percebeu o que tinha acontecido.
 
- Ai meu Deus, mas que vergonha sentar assim no colo dele... Jacinto... Que homi lindo! Tomara Deus que quando eu voltar o trem dê outra viradinha! E que eu caia no colo dele sem querer... Porque eu não vou me jogar... Que colo macio, meu Deus... Se bem que senti alguma coisa me espetando de vez em quando... Mas, fora isso, era muito macio... Ai, ele me segurou nos braços, quase beijou a minha boca... E eu sentei no colo dele... Ai meu Deus... (atinando-se para a gravidade do negócio) Ai meu Jesus, será que eu vou engravidar?
 
O trem seguia viagem e nos vagões todos estavam muito bem dispostos. A viagem seguia tranqüila. Mas quando Erlinda acabou de se olhar no espelho, passou o batom e já saía do banheiro, toda enfeitada, ouviu-se o apito forte do trem, dava até para ver o fogo das rodas tentando diminuir a velocidade da locomotiva que se chocou com uma outra que vinha na mesma linha e que não conseguiu parar.
 
No meio dos escombros dos vagões descarrilhados, pessoas saíam pelas janelas e, na linha, os vagões estavam quase todos tombados. Onde havia sido o choque entre as locomotivas havia um incêndio e muitos corpos eram vistos por todo lugar. Dentre as pessoas que saíam pelas janelas de um dos vagões estava eu que, ferido, não sabia a quem ajudar... Como quem procurava por Erlinda, olhei para os lados e como não a vi, decidi ajudar aos outros feridos que do vagão tentavam escapar.
 
Quando rodeei o trem, vi Erlinda saindo do vagão rastejando pelo chão... Felicíssimo por reencontrá-la viva, me dispus a prestar seus primeiros socorros.
 
- Erlinda...
- Jacinto... Que bom reencontrá-lo.
- Está ferida? Machucou alguma parte?
- O meu braço está doendo adoidado...
- Deixe eu ver. (apertou um pouco) Dói?
- Não.
- Dói?
- Não.
- Doi? (pegando o outro braço)
- Eita fera, homi! Dói demais!
- Espera aí que eu vou improvisar...
 
Arranquei meu cinto de pano, arrumei um pedaço de madeira no mato e imobilizei o braço de Erlinda.
 
- Fique quietinha, que eu vou ajudar os outros, tem muita gente precisando de socorro...
- Eu sei e também quero ajudar.
- Com esse braço assim, acho melhor você ficar aí quietinha, só vai atrapalhar. Fique quieta que eu ajudo, viu?
- Se é assim, então tá...
 
E enquanto eu socorria os demais, Erlinda olhava pra mim e ele para ela, ainda que de vez em quando... E apesar de tudo, era visível a felicidade de nos reencontrarmos vivos naquele lugar.
 
No Hospital, depois de atendidos, eu e Erlinda nos encontramos no corredor. Ela vinha com o braço engessado e na tipóia e eu estava com alguns curativos e já devidamente medicado.
 
- Jacinto...
- Erlinda... E o seu braço, como está?
- Quebrou-se. E você? Teve alguma coisa?
- Só uns machucadinhos à toa... Fora isso, tô zero-bala!
- Que bom, fico feliz. No acidente morreu muita gente?
- Morreu... Um bocado...
- Sabe, por um instante, eu achei que não ia mais te encontrar.
- Eu também achei. Logo que o trem virou, eu fiquei a te procurar no meio daquela gente... Foi um supapo danado aquela virada!
- Pois é... Achei que dessa nós não ia escapar.
- Também achei... E na hora que te vi, quase não acreditei...
- Eu também... Quase não acreditei quando te vi... Será que nós vamos ter que casar?
- Oxente, por que?
- Porque eu sentei no seu colo, posso estar com um filho seu na barriga.
- Oxe, tu acredita mesmo nessas histórias é?
- Oxe, pois se minha vó teve quatorze filhos só de sentar no lugar que meu avô esquentou!
- Mas menina, pra fazer filho não é só assim não!
- Oxente, é não? E como é então?
 
Jacintou explicou tudinho ao ouvido de Erlinda, deixando-a assustadíssima!
 
- Valha-me Cristo! Que é isso! Você tá inventando!
- Pois não tô não... É assim desse jeito mesmo!
- E como é que tu, sabe? Tu já fez filho em alguém?
- Oxe, eu não...
- Não mesmo?
- Não, mas eu bem que queria, não sabe?
- Credo! Pois eu não tenho coragem disso não... Quer dizer que minha vó fez foi isso pra engravidar?
- Oxe, sua vó, sua mãe, sua tia... Todo mundo que tem filho é assim...
- Valei-me!
- Aquela ali, tais vendo? Não tá buchuda?
- Tá!
- Pois então, pra ficar buchuda assim ela fez adoidado!
- Credo... E é bom?
- Deve ser, né? Todo mundo um dia se ajunta... Se casa... E nove meses depois as mulheres estão com a barriga do tamanho da lua...
- É mesmo?
- É!
- E não é que ela tem cara mesmo de gostar dessas coisas!Pra uma barriga desse tamanho...
- Se for de gêmeos então... Aí é que deve de ter feito adoidado!
- É mesmo, é?
- É... Sabe, Erlinda, eu simpatizei tanto contigo que se tu precisasse, eu dava minha vida por tu naquele trem...
- Oxe, pois se tu precisasse, eu dava a minha vida por tu também... Tu ainda vai para o Rio de Janeiro?
- Oxente, e como? Perdi minha mala... meu dinheiro, perdi até as passagens... Tô nuzinho, só com a roupa do couro! Agora só trabalhando mais um ano pra juntar dinheiro de novo...
- Que bom... Quer dizer, que mal... Mas que bom que a gente se conheceu, não é verdade?
- É, que bom mesmo. Que bom...

(Continua...) 

 

Capítulo II
 
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Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 20/01/2009
Reeditado em 22/05/2023
Código do texto: T1395601
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