Casa do Farol
Era uma casa simples, arejada. Paredes brancas, toalha de renda também branca sobre a mesa de madeira. As janelas davam prum jardim fresco que cheirava bem o ano todo. Ervas para chá, tempero, banho e fumo; uma dama da noite que perfumava não só a casa, mas boa parte da rua. Casa sem televisão. Só um rádio à pilha e jornais todos os domingos. Uma cadeira de balanço no terraço pequeno, de frente para o portão baixo. A casa dava uma sensação de seis horas de uma tarde de verão, em algum lugar próximo ao mar.
Era essa a casa do Seu Otávio, o morador mais antigo da região. Quem o visse agora, não presumiria as façanhas que o fizeram famoso, pelo menos nas redondezas da praia do Sopro, anos atrás. Quem o visse agora depararia-se com um senhor alto, de cabelo muito branco e pele escura, caminhando lentamente pelo jardim. Reparem que, descalço, escolhe a terra mais fofa - e quem sabe a mais molhada - para pisar. Ele acabou de regar. A água ferve no fogão e ouve-se a Ave Maria não tão longe dali.
Acreditava ser solitário por opção depois de tornar-se viúvo há cerca de dez anos atrás e, posto que dava-se muito bem consigo mesmo, recusou os pedidos dos filhos e filhas de mudar-se e resolveu viver só. Entendia-se, refletia, pacientemente aceitava as limitações de sua velhice sem constrangimentos. Seu Otávio tinha poucos amigos, mas acreditava serem bons e fiéis e disso orgulhava-se muito. Também tinha ele suas fés, misturadas em dogmas que não faziam sentido isolados, por isso era adepto de duas ou três religiões. Era um homem que não discutia seus princípios, mas ouvia muito bem aos outros, sempre fazendo comentários neutros e sábios, simples de entender.
O que era agora era fruto de um processo demorado de uma vida toda. Nem sempre fora assim.
Otávio agora senta-se próximo a janela. Assopra de leve o café, preparando-se para o primeiro gole.
Com os olhos perdidos em algum lugar do céu, Otávio imaginava o quão bom seria se soubéssemos de fato o que acontece depois da morte, porque, a essa altura da vida, o coração havia amolecido e não havia dúvidas que algo teria de acontecer. Algo, era esse algo que o intrigava. Não acreditava, negava-se a acreditar que a morte era dolorosa, que a morte era o fim; nem tampouco acreditava que iria encontrar-se com Deus em nuvens fofíssimas. Ele queria ter certeza, mas acabou aceitando que a certeza era um sentimento fugaz demais.
Despejou metade do café na pia. Ficara fraco daquela vez. Um pouco incomodado pelos pensamentos que eram muitos, resolveu dar um passeio.
Na esquina deu-se com três meninos. Reconhecia pelo menos um, era um moleque das redondezas.
- Seu Otávio! Fala pro meu primo se não é verdade aquela história da casa do Farol, fala?
- Hun, é verdade aquela história da casa do Farol, disse com imparcialidade e seguiu no mesmo passo, lento e ritimado.
Pôde ouvir, à medida que andava, as crianças discutindo o caso com um certa seriedade.
Há tempos Otávio não havia pensado uma só vez na casa do Farol.
No lado Sul da praia há um Farol, reaberto há pouco pelo novo prefeito, que por muito tempo ficou abandonado, sendo constantemente o lugar de coisas proibidas, exóticas. Era ali onde festas, cultos e até mortes ocorreram. Por anos a fio, as pessoas acreditavam que o lugar possuia alguma magia e quem lá fosse teria a visão de algo importante. Mas o entorpecimento da mente era necessário para aguçar os sentidos. Lá era o local onde tudo acontecia pela primeira vez, onde os jovens perdiam a virgindade, onde fumava-se e bebia sem interrupções. Otávio em pessoa viu-se em muitas situações naquele lugar e talvez por ter visto demais resolveu nunca mais voltar. Isso já fazia uns bons vinte anos, mesma época em que relatou-se a morte de três jovens seguidas de suicídio de uma quarta pessoa. Fora isso o assunto principal da vila por muitos anos. Ninguém nunca mais foi à casa do Farol. E Seu Otávio acabou de resolver que seu destino, naquela noite, era a casa do Farol.
Era uma boa caminhada, ia pela areia, segurando o chinelo de couro pelas mãos. O mar estava lindo, refletindo muitas cores do céu, quase anoitecia.
Quando lá chegou, já era de noite e não vou dizer que mesmo com a nova iluminação Otávio não ficou com um pouco de receio. Ficou, ficou, sim. Medo e receio, não sabia bem, mas a medida que aproximava-se da entrada, sentia um calafrio, um arrepio. O prefeito decerto havia feito um belo trabalho. As paredes do primeiro andar eram brancas e azuis, com quadros históricos da região. Nada era como antigamente, exceto pela enferrujada âncora que datava mais de um século, agora numa moldura de vidro e descrições detalhadas. Resolveu subir as escadarias que davam pro topo do Farol, de onde a vista mais linda podia ser vista.
A cada degrau acima, Otávio sentia-se mais leve, rejuvenescido. Era como se os velhos tempos tivessem voltado, e com eles, a força dos joelhos.
Finalmente no topo, Otávio olhou a sua volta. Não sabia ao certo o que pensar, mas imaginou que quem pensa, pensa melhor sentado e sentou-se num banco próximo ao mirante.
A vista era esplêndida! Há quanto tempo não a via e seus olhos lacrimejaram de saudade contentada.
Ele, ali sentado, enchia-se de um sentimento desconhecido, enchia-se de paixão pela vida. Não aquela paixão comedida que beira à normalidade de um afeto comum. Era uma paixão louca, dos insensatos, dos completos de alma, daqueles poucos que entedem a complexidade de si. E suspirava fundo e amava a vida.
E, paradoxalmente, não temia a morte, pois era ela que fazia o sentido daquela paixão ser tão colossal. No fundo, amava a morte. E sentiu-se tão completo de si que entendeu que o curioso das coisas era o que o intrigava e sentia-se definitivamente curioso em relação à morte.
E decidiu que se havia algum lugar no mundo que quisesse morrer, seria ali, na casa do Farol, na praia do Sopro.