Mendigofagia
Eu sempre acreditei que mendigos fossem entidades, bufões com uma missão nobre, de nos alertar que a vida é dura e que por pior que sua vida esteja, ainda pode ficar pior. Então nutri por eles uma admiração. Esses caras devem ser anarquistas, estão pouco se fodendo pro o resto do mundo, o que existe são eles; o resto é fantasia, pensava eu.
Outro dia, resolvi cumprimentar um mendigo velho, que mora no mesmo viaduto há anos. Passei por ele e disse:
- O senhor tá bem?
Ele disse prontamente:
- Comigo nunca tá e com você?
Fiquei desconcertado, afinal tinha sido uma resposta inesperada. No outro dia, resolvi passar sem falar nada. Ao passar ouço aquela voz rouca me chamar:
- Menino! Ei, gordo! Olhei e vi que era comigo.
- O senhor falou comigo?
- Sim. Vem aqui.
- Claro, pode falar.
Ele prosseguiu sem gaguejar:
- Queria poder ver o que se passa na cabeça das pessoas que passam por esta rua, entende? Não sei se o senhor reparou, mas eu sou um cientista. Faz vinte anos que estou aqui neste mesmo ponto, tentando descobrir o que se passa na cabeça daqueles que passam. Tenho visto muita coisa, gente que chora, gente que ri sozinha, pessoas que olham pra mim com pena, outras que acham que sou invisível, mulheres de guarda-chuva, homens de malas... Porém você foi o único, nestes anos todos, que me cumprimentou. Anotei isso no meu caderninho. Você falou comigo. Queria entender o que se passa na sua cabeça.
Ele disse que sempre me via passar por ali na época da escola, depois quando entrei para universidade... Me viu por vinte anos e queria saber o que me levou a cumprimentá-lo no outro dia.
Respondi:
- Meu amigo, vou lhe ser sincero... Sempre achei que os mendigos fossem de outro planeta. Nestes vinte anos que passo por aqui, o tenho visto envelhecer. De certa forma somos ligados por esta mesma rua, por esta mesma livraria. Foi isso que me levou a fazer o que fiz. Fiquei surpreso com a sinceridade de sua resposta no outro dia, normalmente as pessoas mentem.
Sei que no final das contas resolvi sentar e olhar o ponto de vista que o mendigo teve durante todos esses anos. Ele foi falando e eu ali, sentado e olhando, sentado e olhando. Fiquei surpreso com o tanto de ação que se pode ver numa rua. São pessoas que passam o tempo todo, cada uma com sua história e, juntas, formam um quadro, como se todas elas tivessem sua missão pictórica, a missão de ser a figura de um quadro. Fiquei observando. Calado. Passaram-se duas horas e eu ali, olhando tudo. No fim já não ouvia a voz do meu amigo mendigo. Até que, lá pelas tantas, fui interrompido por um homem sem barba, roupas cheirosas, que lembrava o mendigo, mas não podia ser, ou era? O homem olhou pra mim, me deu uma moeda e disse que iria pra casa descansar. Será? Não pode ser!
Voltei a olhar para rua movimentada, ‘tô aqui até hoje, já faz dez anos. O mendigo? Nunca mais o vi. O homem de roupas cheirosas sempre vejo passar.