CIDADES COM FIM

CIDADES COM FIM

Vias soberbas, na soberba duma decadência ou apenas do seu próprio fim, vi as maiores cidades do universo no limiar do futuro.

Paris é bela, sempre o foi e sempre o será, mesmo que dela restem apenas meia dúzia de pedras a recordar que o belo pode ter forma de urbe. Paris é um mito que enchi de todo o meu ser quando por lá te descobri, amei e perdi. Até essa altura sempre imaginei uma cidade como uma aldeia numa escala um pouco maior, uma aldeia onde seria sempre fácil encontrar o que quiséssemos, onde tudo estaria ao nosso dispor, ao nosso alcance demasiado fácil, tanto a nivel espiritual como material. Pensava que as pessoas às quais perdíamos o rasto desapareciam apenas porque não as queríamos encontrar, e aquelas que conhecíamos e aprendíamos a amar eram fruto do estado de graça da urbe, o mais fascinante local do universo.

Por isso quando te perdi para algo que descobri para sempre todo o meu mundo de concretos se desvaneceu, tendo então que aprender a viver noutra dimensão, a dimensão da adversidade, a dimensão da realidade das coisas com dor que demasiadas vezes recusei ver ou sentir, apesar de demasiadas vezes a ter visto e sentido. De certa forma tu foste um ponte de viragem, rumo a uma certa forma de perceber (e de sobreviver...) (n’) a realidade.

E foi giro como nos encontrámos, quase como num filme que me fez apaixonar por Paris e para aqui vir, apesar do francês ter sido sempre uma mancha no meu currículo escolar...Estava numa estação de comboios, numa paragem do inter-raile, sedento por trocar meia dúzia de palavras da pátria com alguém, e exasperado com tantos franceses. Foi nessa altura que te dirigis-te a mim e me deste a música da língua numa dúvida sobre horários de comboios, certamente devido ao facto de na mochila ter uma bandeirita da terra. Para meu enorme agrado eras da mesma cidade, aliás por lá estudavas, o que em breve originou uma enorme conversa imune aos nossos comboios que entretanto por nós passaram, perante a nossa total indiferença. Provavelmente uma conversa destas na cidade comum teria durado minutos, o que é certo é que ela deu lugar a outras quase sem fim e à ideia de abortarmos o nosso futuro próximo e de mergulharmos no coração da cidade que, descobrimos, ser um amor comum. Afinal as férias ainda mal tinham começado e o dinheiro era o suficiente para uma pequena enorme extravagância. Partimos assim para o coração do sonho mútuo, onde chegámos já abraçados, e dispostos a vivê-la plenamente no seu romantismo. Durante duas semanas dormimos em parques de campismo ou centros da juventude, ou (algumas vezes...) onde calhasse, quando o corpo cedia às directas e à nossa peregrinação alucinante, que nos levou a ver todos os locais “de catálogo” (bem, menos o Louvre, cujas dimensões justificavam um tempo semelhante para o visitar...) caímos no delicioso lugar comum de comermos croiassaints ao lado do Sena, olhando os barcos a abarrotar de turistas com vontade desse passeio, mas com uma vontade maior da nossa individualidade, as inúmeras pontes, ou apenas o rio em si. Fomos ao maior e mais fascinante lugar comum da cidade, elevando-nos ao alto da grande torre, onde repetimos a célebre cena do filme do grande barco, quando o rapazinho segura a moça na popa do barco, perante o ar estupefacto dos turistas, e ai, no local mais alto por onde me deixaram ir gritei a plenos pulmões que era o rei do mundo, pois sentia-me absurdamente o rei do mundo por estar a possuir momentos únicos, que na sua embriaguês emotiva me levaram a esquecer que não passavam, nem passariam disso, de meros momentos.

Também descobrimos as catedrais que tanto amava, levando-te sofregamente a explorá-las, a contemplar um belo demasiado meu, pois, apesar do teu esforço esta paixão não funcionava em stereo...Como que em compensação, acompanhei-te a inúmeras galerias de arte, onde a tua mente se ausentava na contemplação, ao passo que a minha resmungava silenciosa na sua ignorância serem apenas telas com alguma tinta, muita presunção e a indispensável dose de loucura dos criadores, loucura novamente a dois quando voltámos à peregrinação comum de errar mais ou menos ao acaso no coração da grande cidade. E à medida que o tempo do seu próprio fim, descobrimos que não queríamos ficar por ali, descobrimos em nós a urgência duma continuação mais a sul, na nossa cidade realmente (e a frio...) comum. Por isso fartámo-nos de trocar as imensas juras destas ocasiões, promessas de mais viagens, de mais fascínios, mas não de moradas ou telefones, porque tal poderia fazer supor um fim que negávamos avidamente.

Foi então que (numa prova cabal de que os momentos podem ter dupla personalidade...) por momentos te perdi da vista, e também para sempre. Entre a enorme multidão que nos rodeara, procurei-te desesperadamente, procurando as feições do teu rosto entre demasiadas outras feições, mas como o nosso tempo deixara de estar de feição, desapareces-te sem nada deixar a não ser o dispensável e incontornável vazio. Perene de dor, ainda te procurei nos nossos lugares comuns, claro que em vão, e claro que nada me restou a não ser interromper as férias e voltar para a cidade inicial, onde iniciei uma nova busca que durou meses, apesar desta ser redundantemente pequena. E a palavra vão ocupou então o lugar que era teu, pois apesar dos locais de encontro entre os estudantes serem mais ou menos os mesmos, adquirira a consistência dos gases e pura e simplesmente evaporaras-te.

E eu jamais conseguirei encontrar as palavras certas para exprimir a injusta e errada tristeza sentida por mim. Ninguém é insubstituível, mas de certa forma tornas-te errado o aforismo, embora isso não me sirva para absolutamente nada...

Na realidade só fui a Paris numa tarde, demasiado rápida para ver a correr os monumentos que calharam no roteiro de um grupo enorme que teve de submeter as vontades turísticas individuais às do grupo, no entanto se dantes amava a cidade, mais agora a amo, cidade duma tarde maravilhosa, mas sobretudo das fotos que tirei, dos postais e dos filmes e alimento a secreta esperança de lá ir com todo o tempo do mundo, um dia, lá me apaixonar sem dor e(quem sabe...?) por lá ficar. Na realidade conheci-te e perdi-te na minha cidade de sempre, Coimbra, pela qual continuo apaixonado (apesar da triste decadência...), a qual escolhi para o meu futuro previsível, apesar do presente e passados demasiados feridos a supostamente fazerem-me desejar outras paragens. Na realidade a nossa a história foi bem diferente, durou muito mais tempo do que um simples e típico verão, e a ideia de te perder num local que conheço demasiado bem era-me e é demasiado insuportável. Como é possível deixar de ver alguém em algo que supostamente conhecia melhor do que as minhas próprias mãos? Não sei, como nunca cheguei a perceber o total e absurdo amor que senti por ti, tornado mais absurdo por ter acabado no meio das cinzas com que o incinerámos depois de tanta coisa de belo que lhe deu origem e o fez crescer. Não consigo perceber e muito menos assimilar a tua ausência, o vazio absurdo que fizeste questão de deixar no teu lugar. Por isso gostava de te dizer ainda imensas palavras que me faltaram na altura certa, antes que esta se transformasse em errada. Por isso Coimbra era demasiado pequena para esse amor, (e a cidade certa para a tua ausência por ser a suposta capital da saudade), por isso tinha de exorcizar esse amor na cidade dos meus sonhos, talvez porque (como em quase tudo aquilo que sonhamos) ela representava um ideal à qual deveria juntar um ideal (o teu) para a tornar perfeita. Acabei por te perder no rescaldo de um sonho transformado em fel, ela continua à minha espera, à espera de se transformar numa desilusão.

Eu era o inferno, a grande recriação do caos, na cidade mais baptizada pelo fogo daquele ano onde os céus começaram a deglutir definitivamente as antigas aldeias germanas.

Vi, senti eslavos e germanos a devorarem-se por entre uma orgia de destruição sem tamanho, porque por muito criativa que seja a imaginação sádica dos deuses, nunca se igualará ao ardor que o homem tem quando se esquece que é um ser criativo e se transforma na reencarnação das trevas.

Vi e senti cada tiro, explosão, cada morte, cada suspiro de dor, cada acto de inumanidade com que aqueles humanos faziam questão de enganar a sua humanidade.

Senti as minhas entranhas a serem rasgadas pelo ardor que mil Dantes nunca se atreveriam imaginar nos seus infernos. O impacto de cada tiro, o ribombar e cada obus repercutia-se em mim, fazendo-me estremecer na incompreensão de tentar compreender a lei demasiado lógica do jogo insidioso que deveria definir o futuro, um futuro que deveria ser de séculos ou milénio se que por isso custava tão caro em vidas, porque essas vidas deveriam poupar muitas mais...Mas esse futuro seria apenas de alguns anos, a guerra voltaria mais cedo do que nunca, pois a paz é o mais valioso e escasso dos bens ambicionado pelo homem, sedento dela, mas incapaz de a manter, devido à sua nebulosa inquietação, à sua febre demente pelos cenários de caos, onde a megalomania da raça brilha em todo o seu esplendor negro na tentativa esquizofrénica de atingir um bem, um prazer absoluto que só o tem através da escuridão da sua alma que aproveita estas ocasiões para brilhar desalmadamente na desumanidade de quem dá azo às coisas más dentro de si.

Eu era o palco principal da matança, eu era as explosões, os tiros, eu era a matança, eu era todo o sangue derramado e por derramar, eu era a o cerne de mil infernos, que nunca em mil ou milhares de anos tinham atingido àquela demência.

Comunismo, nazismo, eram apenas algumas palavras e políticas a disfarçar a vontade demasiado contida por sangue, sangue sem fim que a alma vampira humana deseja demasiado para viver em paz, dissecada algum tempo antes, mas nunca demasiado, pois ela nunca chega para ficar demasiado tempo.

Eu era o fim de tempos para milhares, pois no meu cerne viveram o seu fim, em mim adormeceram pela última vez, era a terra negra recordada e amaldiçoada com mágoa pelos seus descendentes.

Naqueles meses fui o centro do universo, fui o centro de todas as atenções, nunca fui tão falada, nunca tantas vozes referiram o meu nome com um esgar de esperança, ou apenas de morte. Nunca o fervilhar foi tão intenso, o viver em mim foi tão intenso, os sentires foram tão intensos, tão odiosamente intensos...E por isso detesto-os, apesar de já ter passado tanto tempo, da paz finalmente ter chegado até mim, ter adormecido no meu colo e permanecido muito mais tempo do que o meu cinismo faria supor. Já poucos se recordam de tudo, apenas o fazendo pelos monumentos que os obrigam a lembrar. Mas eu não esqueço, estou fervorosa para que saiam de mim, para que desapareçam duma vez por todas, me deixem vazia, mas sem eles, sem a sua inquietação, sem os seus sentires, quero que me deixem só, nem que me transforme em nada.

EU SOU A CIDADE

Vivíamos quase sempre assim, e assim perdemos a capacidade de imaginar outra maneira de viver, mas por fim o mais temido, o mais evitado dos destinos aconteceu: as cidades começaram a apodrecer lenta, mas seguramente, adivinhando uma decadência que ninguém queria admitir, mas que ninguém poderia evitar, pois era já tarde demais.

Claro que uma enorme série de ideias e belos projectos (para não variar...) inovadores procuraram desmentir o indesmentível, em vão, porque por muito que se tentasse revitalizar os grandes espaços, eles continuaram a sua caminhada inexorável rumo ao ocaso. As luzes brilhantes que sempre as caracterizavam, e que as faziam das poucas construções humanas a serem vistas do espaço, ficaram cada vez mais murchas, baças, mais fúnebres, lançando uma tristeza muda sobre os grandes corpos urbanos. Mas se as cidades eram a máxima realização humana, a sua decadência significaria o fim humano? Ninguém sabia responder, quer consciente, quer inconscientemente a esta pergunta, mas duma forma subliminar talvez o soubessem, porque muito lentamente essas cidades começaram a ficar vazias, num êxodo quase invisível, nunca assumido, pois quem o fazia desculpava-se com a procura duma vida mais saudável nos campos, sendo a migração não de poucos milhares mas de milhões, até que a falta de gente acabou definitivamente com a sua agonia, transformando-as em corpos gigantescos onde apenas viviam uma mão cheia de mendigos e marginais, mas só durante algumas gerações, o tempo que demorou a esgotar os despojos ainda dentro delas. Paralelamente os poderes mundiais acabaram por se render à evidência dos seus cidadãos, dissolvendo-se por seu turno e pondo assim um ponto final à civilização.

Talvez fosse um sinal divino, ou talvez fosse apenas um prelúdio do fim, o que é certo é que voltámos ao local onde tudo começara.

E as cidades morreram assim silenciosamente, sem glória, obrigando-nos a sair desses mundos que estavam a apodrecer, acabámos por deixar esse lugar de hiper tecnologia moribunda, regressando aos campos, aos bosques e florestas, onde começámos tudo de novo.

E as gerações dos homens passaram, apagando das novas a memória de outros tempos, de outras socializações, as gerações passaram tal como as estações,lentamente como se passava no campo, e a humanidade aprendeu a viver numa calma esquecida há muito, pautada não pelo brilho dos néons mas pelo caminho do sol e das noites sem a interferência do homem. Redescobriram-se assim velhos prazeres, pequenos enormes tesouros escondidos na natureza impoluta, como o nascer duma planta ou o espectáculo dum campo que mudava radicalmente de cor a cada nova estação, e assim lentamente fomos vivendo, descobrindo alegremente que afinal não estávamos a morrer, fomos crescendo e prosperando, criando um mundo novo onde acabámos por construir novas cidades.

Continuo eu, apesar dos homens que me criaram e me deram significado terem desaparecido há muito.

Todo o meu ser aspira e suspira por eles, por uma coisa ida, provavelmente para sempre, por isso todo o vazio que sinto é um vazio demasiado simples, demasiado concreto, e por isso demasiado absurdo.

Ainda hoje sinto o pulsar de inúmeras vidas que me percorreram, ainda vivo intensamente essas vidas, apesar de serem apenas memórias, apenas vestígios dum passado que em tempos me tornou ilustre.

Onde estão eles agora? Terão desaparecido definitivamente, ou apenas de mim? Terão encontrado outros locais onde construíram outras iguais a mim? Não sei, mas sinto que estarei para sempre só, com a minha parte de cima (e a debaixo, consoante os locais por onde eles tenham andado e deixado marcas da sua presença) a apodrecer no juízo final dos elementos, enquanto eu continuo eu no meu todo, continuo perene de marcas, de recordação que nunca mais desaparecerão. Talvez devido ao futuro oco e ao futuro sem nada me recorde dos anos deles demasiado bem e preserve essas recordações com o máximo significado, dado sem elas eu nada mais ser do que um enorme corpo morto, cheia da mim mas ao mesmo tempo insustentavelmente vazia. Como passatempo dum tempo que absurdamente não existe (pois essa raça inventou o tempo, sendo a única que o contava e que se agarrava desesperadamente a essa contagem) revejo vezes sem conta essas memórias, como agora: Lembro-me do inicio, lembro-me dos nossos melhores tempos, onde a minha pureza os fez acrescentar-me continuamente, quase indefinidamente, por um tempo indefinido, até que começaram a morrer, até que acharam que o meu solo e ar por eles moldados eram demasiados perigosos, eram a causa do fim tanto temido, a razão provável da sua contagem do tempo... Assim começaram a esvair-me, lenta mas inevitavelmente, até que no meu enorme corpo já só existiam demasiados poucos deles para poderem sobreviver. Acabaram por morrer, e de certa forma eu com eles. Longe estão pois os tempos iniciais onde as primeiras construções começaram a ganhar a forma do concreto que seria sua grande civilização, tempos entusiastas, onde o seu entusiasmo me cobriu com as suas ideias, inicialmente desordenadas, para mais tarde, quando o pulsar dessa civilização me transformou numa metrópole hiper-organizada (o centro do universo, como alguns me ousaram chamar) estabelecerem cada nova construção meticulosamente, onde cada metro era pensado, onde cada nova rua tinha sempre um plano e imensas intenções, as intenções com que matizaram todas as suas construções. No entanto, apesar de olharem para mim como algo irracional eu sentia, eu percebia e amava-os pelo facto de terem dado significado ao vazio natural que os precedeu, e onde habitava apenas uma vaga consciência. Talvez fosse uma característica típica de mim, mas o que é certo é que assimilei tudo quanto me tocava, tudo, sendo mais uma razão para os venerar, porque me encheram duma imensidão que outros solos vazios nunca terão, a imensidão humana. Assim, rasgada desde o céu às entranhas estava orgulhosa dos meus senhores, ufana por no meu colo e interior viverem, prosperarem, continuarem, por me encherem dos seus sentires, amores ódios, ou apenas indiferenças, que acabei ao fim de algum tempo por os sentir quase da mesma forma, embora a minha forma me obrigasse a ser uma mera assistente passiva, até nas grandes dores, quando de irmãs minhas partiam as grandes aves de ferro que sobre mim lançaram um terrível fogo destruidor que pronunciou a chegada de outros mestres. E se o sei é porque eles se orgulharam de tal e encheram as minhas ruas com a sua história. Humanos eram humanos, e estes portaram-se de igual maneira aos anteriores, quase nada alterando. Os anos passaram-se assim, com a alternância de seres, com alguns retrocessos que ora me diminuíam ora aumentavam, sendo a única constante a presença física deles, e a permanência dos seus sentires.

Agora que as suas construções se estão a desmoronar, a transformar-se nas pedras primordiais com que me encontraram e me construíram, sinto o seu vazio, sinto-me vazia sinto-me a morrer pelo fim dos sentires, sinto-me a voltar ao principio dos tempos onde não era nada, apenas a vaga consciência da terra, apenas uma paisagem sem significado, Talvez para tudo o resto, menos para mim.

EU FUI AQUILO QUE ME QUISERAM

EU FUI CIDADE

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