Confiança

— Alô?

— Fê? Sou eu.

— Pô, finalmente! Eu sabia! Sabia que você ia pisar na bola! Já estou te esperando há duas horas!

— Eu posso explicar, Fê...

— É sempre assim! É só a gente combinar alguma coisa e você inventa uma desculpa! O que foi agora? A égua pariu? O relógio não despertou? Tua mãe ligou? Que tragédia aconteceu para justificar o seu enésimo furo? Hein? Me diga!

— Fê, eu bati o carro...

— Arrã! E meu cachorro comeu o dever de casa! Até parece, Mauro! Você dirige que nem uma senhora com catarata. Não bate o carro nunca! Pode inventar outra! Tá me achando com cara de trouxa, é?

— Fê...

— O que foi? Te peguei, não é? Eu não sei por que eu ainda aceito isso. Dois anos, Mauro, dois anos sendo passada para trás. E sempre com uma desculpa diferente! Sinceramente, Mauro, eu acho que você não está a fim de levar essa relação à sério.

— Não é assim, Fê. É verdade, eu bati o carro, e foi feio...

— Ah é? Pois eu espero que tenha sido horrível para eu conseguir engolir essa! Duas horas, Mauro, duas horas! Tá me achando com cara de palhaça?

— Fê, eu ainda estou no carro.

— Então vem para cá já! Depois a gente faz o boletim de ocorrência! A Ritinha já ligou três vezes. Eles só estão esperando a gente.

— Fê, você não está entendendo. Eu estou preso nas ferragens.

— Quê?

— O resgate está chegando, mas se eles demorarem muito não sei não. Quis te ligar para poder ouvir sua voz. Sei lá, pode ser a última vez. Não sei se eu escapo dessa...

— Não brinca assim, Mauro! Pelo amor de Deus, eu estou tremendo inteira! Onde é que você está?

— Não sei, Fê. Foi muito rápido, e eu ainda estou um pouco zonzo. Só consegui telefonar porque meu braço estava livre, e o celular no bolso. Não estou sentindo nada da cintura para baixo, e estou com medo. Fê, eu acho que vou morrer.

— Não fala assim! Me diz onde você está, que eu já vou para aí! Ai, meu amor, desculpa...

— Esquece Fê. Mesmo que eu soubesse onde estou, você não ia chegar a tempo de qualquer jeito. Se os bombeiros conseguirem me tirar daqui, peço para te avisarem para que hospital eu fui. Quer dizer, isso se eu conseguir ficar acordado até lá. Eu tô com um sono...

— Mauro! Mauro! Não dorme! Ai meu Jesus Cristo! Mauro, fala comigo! Não faz isso comigo! Mauro? MAURO!

— Oi, eu estou aqui. Não grita, eu só cochilei um pouco.

— Não dorme mais, tá me ouvindo? Você tem que ficar acordado até o resgate chegar. Tenta se lembrar onde você estava antes do acidente, que eu vou te procurar. Mauro, não faz isso comigo, pelo amor de Deus!

— Eu te amo, Fê. Sabia disso?

— Eu também te amo, Mauro, mas você não pode dormir!

— Lembra daquela música? Always look to the bright side of life...

— Isso, meu amor, canta, canta mas não dorme. Você pode estar perdendo sangue, entrando em choque. Mauro, não faz isso. Mauro responde.

— Só um cochilo...

— Não Mauro! Nem um cochilo! Espera o resgate! Mauro? MAURO!

— Tu... tu... tu...

— Merda, Mauro! Pára de brincadeira!

— Tu.. tu... tu...

—o—

— E aí?

— Acho que ela caiu.

— Meu, você exagerou dessa vez...

— É eu sei, mas ela me pegou de jeito. Tava fula da vida, precisei improvisar. Gostou do toque do desmaio?

— Cara, como é que você vai se safar dessa? Preso nas ferragens? Ela vai desconfiar...

— É mesmo. Bom, o carro estava precisando de uma temporada no mecânico de qualquer jeito. Ela nem vai se ligar. E depois da festa você me dá um soco na cara.

— Soco? Por que?

— Sobreviver a um acidente vá lá, mas pelo menos um olho roxo tem que ter. Agora vamos para a luta!

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Alexandre Heredia é co-editor do NecroZine (http://www.necrozine.blogspot.com/), e mantém os sites Psicopata Enrustido (http://www.psicopataenrustido.blogspot.com/) e Antelóquios (http://www.anteloquios.blogspot.com).

Alexandre Heredia
Enviado por Alexandre Heredia em 29/04/2005
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