Só conhecia testamentos de novelas e filmes.
Filmes de mistério, em que o dia da leitura se reveste de pompa e formalidades.
Romances em que o heróico “de cujus”, revela seus segredos e demonstra altruísmo até então insuspeitado.
Via de regra, os interessados ostentam fisionomias pesadas e sérias, mal disfarçando a ansiedade.
São as últimas vontades de alguém e esse alguém pode ter sido muito amado.
Ou não!
...
Na qualidade de narradora, pude observar cada um, com as vantagens de não ser vista, nem estar envolvida.
As pessoas já tinham se cumprimentado, exceto em relação a uma mulher, isolada dos demais e cujo semblante, em tudo se diferenciava deles.
Ela parecia triste demais, sozinha demais, suspeita demais.
Era observada disfarçadamente, de "canto de olho".
As trocas de olhares entre os presentes, confirmavam que não a conheciam.
Adivinhavam que algo inesperado explicaria a presença daquela mulher.
E a olhavam com antipatia, ainda gratuita.
O estranho clima gritante de olhares e desconfianças só foi interrompido com a chegada do advogado que iria ler o testamento.
E logo demonstraram a irritação por ter sido o processo de inventário interrompido pela existência de um surpreendente testamento.
Alguns dos pretensos herdeiros já tinham buscado informações sobre como aquele papel poderia afetar seus quinhões na partilha e temerosos de que sua existência pudesse causar-lhes lesão patrimonial, faziam-se acompanhar de advogados para verificarem se o mesmo estava formalmente correto,  judicialmente perfeito, e consequentemente válido.
Já sabiam que o de cujus podia dispor de metade de seus bens, o que significaria considerável perda no que esperavam receber.
Sabiam também que o testamento poderia trazer muitas surpresas e não somente em relação ao patrimônio propriamente dito. O danado do falecido poderia surpreender com questões morais ou pessoais que poderiam incluir o reconhecimento de um filho, por exemplo.
Poderia também causar-lhes um bom transtorno se quisesse ser cremado, visto que o enterro convencional já tinha significado um “investimento”, cujo retorno poderia revelar-se infrutífero.
Em torno disso tudo, dispararam perguntas ao advogado da família, todos falando ao mesmo tempo.
Exceto a mulher misteriosa, calada, segura e aparentemente acima de toda a celeuma.
Com firmeza, o Dr. Garrido exigiu silêncio e, já cumprindo o desejo do morto, propôs um brinde em honra e memória daquele que além de cliente, fora seu amigo.
O evento aconteceu na biblioteca da mansão em que morava o falecido, classicamente decorada, com seu retrato ladeado por dois archotes, presente como nunca, no olhar grave e entristecido como jamais alguém havia percebido antes daquele dia.
O silêncio era palpável e incômodo.
Após o brinde, do qual a maioria participou com má vontade, o advogado deu todas as explicações técnicas que julgou necessárias, iniciando a tão aguardada leitura.
O biliardário falecido, que já era viúvo, surpreendeu ao distribuir metade de seus bens, ao casal de filhos, em igualdade de condições, nada deixando para as "aves de rapina" como se referia aos demais pretensos herdeiros.
A outra metade, a disponível, destinava à misteriosa mulher que revelou ter sido sua amante, amiga, confidente e a única pessoa que dele se aproximara sem qualquer interesse que não fosse superior.
Fizera constar do testamento a história do amor que mantiveram nos últimos anos, após a morte da esposa.
E não poupou ninguém dos detalhes.
Contava de como se conheceram. De como ela estivera sempre ao seu lado, nada exigindo ou sequer pedindo para si mesma. Falou enfim que ela tinha sido o verdadeiro e talvez único amor em toda sua vida adulta.
Pelo menos assim pensara, até o dia em que encontrou uma carta onde ela se dirigia a outro homem, avisando que a tortura estava no fim e seria compensador já que o “carcamano” tinha feito um testamento, deixando-lhe metade de tudo o que tinha e que não era pouco.
Manifestou finalmente a mágoa com os filhos que sempre o trataram como simples provedor, sonegando dele a retribuição do carinho que sempre lhes devotou.
 
Todos olharam para o retrato.
E naquele momento, o homem pareceu vivo, com um sorriso de escárnio nos lábios.
 
O testamento terminava com uma estranha mensagem, à guisa de epitáfio.
 
Com meus bens, como queriam.
A todos dedico, a minha solidão.
 
reginaLU
07/11/2008

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