Sobre o Futuro e as Decisões...
Ele olhou para o vidro e sentiu que toda a sua vida o levara àquele momento...
Ele não sabia descrever o misto de emoções que o embalavam... Não sabia o que dizer, e, portanto, nada disse. Chorou. Olhou em volta, estava só. Chorou mais...
Lembrou-se de uma série de fatos. Percebeu tratar-se de um quebra-cabeça, cujas peças ele construiu e dispôs... O resultado, do outro lado do vidro, ficou muito bom. Ele teve orgulho do quebra-cabeça, e chorou mais uma vez.
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Desde muito novo ele sempre achou que na Terra existem dois tipos de pessoas: as que decidem e as que aguardam as decisões. E ele decidiu cedo que tipo de pessoa ele seria. A primeira peça do quebra-cabeça ocorreu na escola, ele nem lembrava em que ano. Na verdade, ele nem lembrava da situação. Ele somente lembrava ter presenciado algo que não deveria... O que foi mesmo? Um beijo? Foi isso? Sim, foi um beijo. Um beijo intenso entre uma professora do primário e um aluno do segundo grau, terceiranista. Ele ficou chocado e correu. A professora percebeu a presença dele e correu atrás. Ele foi parado pela diretora, que passou-lhe um pito por estar correndo dentro da escola. Depois, vendo o espanto no rosto dele, perguntou porque ele corria tão desesperado. Neste momento chegou a professora. Culpa estampada na face. Ela era bela, sem dúvida, mas ele achava que ela não deveria estar naquela situação dentro da escola... E, com um aluno... A diretora perguntou de novo:
- Vamos, me fala o que aconteceu.
A situação passou como um flash em seus pensamentos. O que aconteceria no futuro após a resposta que ele desse? Se ele falasse o que o assustara, a professora seria demitida? O colega seria suspenso? Ele olhou as mãos da professora. Ela esfregava nervosamente uma mão na outra. Não havia nenhuma aliança. Ele olhou para a diretora, que parecia saber que seu susto tinha a ver com a presença da professora. Ele pensou no colega. Bom aluno, popular, belo também. Deveria ser poucos anos mais novo do que a professora. Os olhos da diretora corriam impacientemente dos olhos dele às mãos nervosas da professora. Ele respirou fundo e respondeu:
- Não foi nada. Peço que me desculpe por estar correndo.
- Nada mesmo? – A diretora estava mesmo desconfiada.
- Nada mesmo.
- Está bem, mas, se eu o vir correndo de novo, conversaremos muito mais seriamente.
A diretora deixou o corredor. Ele fez menção de ir embora. A professora o acompanhou. Enquanto andavam, conversaram.
- Obrigada. Fico te devendo essa.
- Não foi nada. Deixa pra lá, mas, toma mais cuidado na próxima vez.
- Não vai haver próxima vez. Nós estávamos terminando...
- Nossa, imagino como era quando vocês ainda estavam namorando.
- Mas, me fala... Porque você não contou à diretora o que você viu?
- Olha, professora, meu primeiro intuito era contar... Mas ao ver a senhora chegando...
- Senhora nada, você.
- Ta certo, ao ver você chegando, percebi que ninguém ganharia nada com isso. Só perderia. A senhora... Quer dizer, você poderia perder o emprego, o Marcelo poderia ser suspenso... E eu? Não me acrescentaria nada... Eu não teria nada a ganhar
- Você foi sábio... E generoso também... Mas você ganhou sim. – Ela estendeu a mão a ele – Você ganhou uma amiga! – E sorriu enquanto apertava a mão dele.
Depois deste episódio, ele criou um método. Primeiro ele percebeu que durante o seu dia, praticamente tudo exigia decisões. Para a escola, ele iria de ônibus ou de trem? Almoçaria ou lancharia? Iria com a calça jeans clara ou escura?. A maior parte dessas respostas ele dava instintivamente. Já estava no sangue... Mas, vez por outra, e não poucas vezes, ele via-se envolvido em uma situação que exigia uma decisão cujos impactos futuros ele não poderia precisar. Nessa hora, ele aplicava seu método: Para cada decisão pela qual ele pudesse optar ele tentava imaginar o que de bom e o que de ruim poderia advir dela no futuro. Na verdade o futuro era o foco principal de suas decisões. Daí ele pesava, e com um pouco de sorte e bom senso optava pela decisão mais acertada. Passou a fazer desse método uma constante em sua vida. Acertou a maioria das vezes, errou algumas. Mas percebeu que decidindo ele se destacava daqueles que deixavam as decisões para os outros. E ele percebeu isso aos 14 anos.
Agindo desta forma, ele passou a ser levado a sério por todos. Pela diretora do colégio, pelos professores e pelos colegas. Foi escolhido monitor chefe de todas as turmas do segundo grau. Apesar de ser um jogador apenas regular, era o capitão do time de vôlei do colégio, e, quando um dos colegas resolveu criar uma chapa de oposição para o grêmio estudantil, o nome dele surgiu como um nome de consenso. Situação e oposição confiavam nas decisões dele. Ganhou as eleições.
As constantes promoções que recebia no trabalho demonstravam que realmente ele mais acertava do que errava. E além disso ele tinha uma série de qualidades que eram valorizadas: Proatividade, iniciativa, capacidade de decidir, visão de futuro. Começou contínuo, foi a assistente de gerente, gerente, assessor de diretoria e diretor. Cortava custos com sensibilidade, mexendo em processos e não demitindo pessoas. A empresa de médio porte aumentara sua lucratividade em 60% desde que o jovem presidente entregara a ele a área de logística. Sofria muitas pressões, mas não decidia baseado nas pressões. Ele confiava em seu método.
Somente em uma área da sua vida o método parecia não funcionar. Era com ela. O nome dela era Alice, e, na cabeça dele, toda decisão que ele tomava em relação a ela parecia ser a menos acertada, apesar da aplicação do método. Quando ele a conheceu em um curso de verão, quis pedir seu telefone, o método lhe dizia que havia pouco a perder. Quando ele parou na frente dela e mal conseguiu falar, ele culpou o método. E ficou sem o telefone dela. Quando usou seus conhecimentos de diretor para descobrir onde ela trabalha e o telefone de lá, o método disse que o status dele justificaria a invasão de privacidade, mas, o que aconteceu...
- Alô, por favor, eu gostaria de falar com a Alice.
- É ela. – E ele se identificou
- Oi, tudo bem?
- Tudo, eu liguei para saber se a gente não poderia... quer dizer, se você não gostaria, ou melhor, se você quer sair comigo um dia desses.
- Olha, estou feliz de verdade por você ter ligado, mas, não dá pra falar sobre isso aqui no trabalho, e, eu estou um pouco ocupada, e...
Ele já não ouvia nada... Despediu-se, ia desligar, o método falhara de novo, mas, subitamente, ela fez a pergunta:
- Como você conseguiu meu telefone?
- Bem, eu... Não importa, não é? Nós não vamos sair juntos mesmo...
- Bem, eu disse que não queria sair com você?
- E você quer? – Ele estava pálido e suando frio
- Sim, só não dá pra combinar agora. Anota meu telefone de casa.
- Sim, sim, agora mesmo.
E ele não achava caneta nem papel... Achou a caneta, nada de papel, anotou no tampo da mesa. Riu. Ele deveria ser o único executivo que anotava o telefone de suas paqueras no tampo da mesa.
Saíram, conheceram-se, comeram, beberam, beijaram-se. Ele estava apaixonado. Ligava para ela várias vezes ao dia, e ela para ele também. Encontravam-se todas as noites. Já havia roupas dele na casa dela (apesar dos protestos da mãe dela), e roupas dela aos montes no apartamento dele, que morava sozinho. E foi por causa das roupas que ele teve de tomar a decisão mais crucial de sua vida. Como as roupas dela ficavam amontoadas no pequeno armário dele, ele resolveu fazer uma surpresa e comprou um grande armário, onde poderiam caber as roupas dele, e as dela também, na verdade caberiam todas as roupas que ela possuía. Dentro de uma das gavetas haveria uma surpresa que ela iria amar. Quando aplicou seu método para testar as possibilidades, ficou claro que daria certo. Ele a amava e sabia que ela o amava também, e já era hora de dizerem isso um ao outro.
Na porta de casa ela perguntou:
- Fala logo, que surpresa é essa?
- Você já vai ver.
Entraram no apartamento e ele levou-a ao quarto. Quando ela viu o armário não ficou muito empolgada. Fez até uma careta, mas, ele não se preocupou. Quando ela visse a surpresa, tudo iria ficar bem. Fez-se o silêncio. Ela o quebrou.
- Porquê você gastou dinheiro com armário?
- Bem, achei que, mesmo aqui em casa você poderia querer organizar as tuas coisas do teu jeito. Eu não preciso nem de metade desse armário... Todo o resto é teu.
- Mas eu não vou trazer tanta roupa pra cá.
- Veja bem, este armário tem algo de especial na primeira gaveta do lado esquerdo... Talvez valha a pena olhar... – Ele estava confiante
Ela olhou... pegou, disse que eram lindas, e devolveu a ele.
- Mas, Alice. Você não quer?
- Não! Quer dizer, não é isso... Eu quero, mas, não agora.
- Mas, porque esperar? Eu amo você e sei que você me ama.
- Olha, tudo na tua vida é lógico, mas, o amor não é. E o que eu sinto por ti eu nunca senti na vida, mas, eu não sei se quero passar toda a minha vida com uma pessoa que decide tudo analiticamente. Tu me conquistaste com teu jeito... Sério e atrapalhado... E eu estou curtindo cada dia contigo... Não quero apressar as coisas... Eu queria que a gente continuasse namorando, e nada mais...
Ele olhou para a caixinha com as alianças na sua mão. Ele não sabia o que fazer... O método falhara de novo... O próximo passo lógico seria ele dizer que ele a amava mais do que ela a ele, e, por isso, se ela não podia dar um passo a frente, ele também não queria que as coisas ficassem apenas como estavam... Ele tinha de tomar uma decisão. Aplicou o método... Não gostou da resposta. Aplicou o método de novo... E, baseado no método, ou apesar dele, ele decidiu.
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Ele sentiu que toda a sua vida o levara aquele momento, olhou através do vidro e viu sua pequena filha. Acabara de nascer e dormia linda no berçário a pequena Aline. A enfermeira ia leva-la para o quarto e ele iria acompanhar.
Chegaram ao quarto. Lá já estavam Joana e Marcelo, seus melhores amigos, os padrinhos de Aline. Ele olhou para a pequena menina e riu para si. Lembrou-se que a amizade começara anos atrás, quando ele os surpreendeu agarrados na escola. Ela professora, ele aluno. E agora, Joana é a diretora daquela escola e Marcelo é o presidente da empresa onde ele é diretor. Fez-se o silêncio, mas, logo foi quebrado pela voz que ele mais gostava de ouvir.
- E aí, papai? Escolheste o nome? Alicia ou Aline?
- Aline... O nome dela é Aline...
- Aplicaste o método? – Ela riu o riso que ele adorava.
- Não, Alice... Quando tem a ver contigo nunca dá certo.
Todos riram... Todos estavam ali... O quebra-cabeça estava montado...