O Pianista
Tocava sua última música da noite – uma rapsódia – para toda aquela numerosa e nobre plateia. A noite havia sido esplendorosa – e comum – como todas as noites dessa gente. Recebe aplausos. A festa acabara. A multidão de empresários, industriais, e filantropos vai deixando o salão cerimonial, enquanto Mauro, o pianista, desce do palco pelas cortinas do fundo, observando de lado cada dama e cavalheiro seguindo seu caminho: uns, antes de aguardar os conversíveis clássicos chegarem das mãos dos manobristas, pegam sobre o pedestal de mármore da porta do hall os convites para a próxima festa, que seria a três dias; e outros, de tanto tédio e mesmice, passam direto, sem mesmo ler a razão do trabalhado convite.
Não era sempre que Mauro participava deste tipo de festa, mas como era músico há doze anos, frequentara já muitos lugares da alta sociedade: clubes, teatros, chácaras. Mas estar no Imperatore, em Nápoles, pela primeira vez, foi uma sensação marcante. Já estava acostumado com o glamour dos ricos – mas ele não era rico não. Aliás, ele preferia chamá-los de nobres. Segundo ele, há uma grande diferença entre ser rico e ser nobre, e sua profissão permitira conhecer dos dois.
Nestas nobres festas, portanto, onde Mauro atendia a todos os gostos musicais; quando os galantes se encontravam, todos arrumados e enfeitados de nascença, nem queriam saber com que tipo de pessoa estavam conversando nem a quem estavam sendo apresentados – nestes lugares não é delicado falar de negócios, tampouco de títulos –, e cumprimentavam Mauro como se ele fosse um deles. Mas ele era pobre, só que acabou se acostumando com aquele ar, e aprendeu a como se comportar como um nobre, fazia amizades, e, sendo conhecido, era sempre convidado a tocar seus clássicos nas festas seguintes.
Foi numa dessas festas que conheceu um tal de Augusto Danzo, um jovem empresário, herdeiro da rede de concessionárias Danzo, em São Paulo. Augusto era muito solitário, e, tendo que viajar para Nápoles a negócios, convidou Mauro para ir com ele, e tocar em uma festa que aconteceria no final do mês. Foi assim que o pianista conheceu o Imperatore. E foi nesta noite que ele sentou nas escadas que davam para a entrada dos fundos, e chorou.
Mauro e sua família eram da periferia de Santo André. Quando tinha quinze anos, encantou-se com um piano velho que via na sala de música de sua antiga escola. Aproveitava a hora do recreio para tentar extrair alguma melodia do velho e bom Fritz Dobbert empoeirado.
Um dia chegou em casa e contou para o pai que queria ter aulas de piano. O pai gargalhou: pobre só pode aprender viola e cavaquinho. Mas Mauro não desistiu e acabou tornando-se um exímio pianista. Ficou famoso. E quando foi convidado para se apresentar pela primeira vez numa festa de gala, teve que aprender a dar nó em gravata e a vestir terno. Provou comidas que nem sequer sabia que existiam, e parou de comer só quando a cerimônia acabou. Chegou em casa só na manhã do dia seguinte – quando seu pai se aprontava para ir trabalhar –, e viu apenas um copo de café e meio biscoito na mesa. Largou a gravata no sofá, seus olhos se encheram de lágrima, correu para o seu quarto. E neste dia também chorou.
Mas não tanto como nesta noite. Porém, não chorou de êxtase por estar no Imperatore, mas porque vira os serventes levarem da cozinha para os fundos do hotel cinco galões de trezentos litros cada, quase cheios de rondelli, canelloni, ravioli e salada – tudo lixo. Eram as sobras da cerimônia. Sabe, os nobres não costumam comer tudo o quanto está no prato, como o fazem os pobres. É educado deixar um tanto, para se jogar fora mesmo.
E foi ao ver tanta comida destinada ao lixo que Mauro – esperando o táxi que o levaria ao chalé de Augusto – pensou nos seus colegas de infância, nos vizinhos simples da periferia, no seu pai, e no seu país. Também pensou nos nobres.
Por isso que, nessa noite, também chorou.