Sobre meninos e deuses

Atemporalidades. Onde está a infância, a adolescência, a idade adulta e a senilidade? Onde está o futuro e o passado? Se o futuro depende do passado, este também depende daquele. E num espaço-tempo não definido estava o menino – este ser do sexo masculino que é tão homem quanto um velho. Era final de ano e ele estava um pouco chapado. No último semestre havia fumado realmente na maior parte dos dias. Desta forma o presente tinha cheiro de passado, e isso muito o agradava. Então ele pensou em escrever. Era um menino que gostava de escrever – algo que era mais comum às meninas. Nunca fora um hábito seu escrever chapado: só algumas vezes. Mas era época de reflexão. Uma entidade envolvente no ar: o tal do, como chamam, espírito do natal. Fim de ano, fim de ciclo. Um ciclo meramente formal criado pela sociedade em sua raiz pré-capitalista, mas ainda um ciclo. E ele recapitulava o passado, sendo este um dos seus esportes preferidos – além, é claro, do seu preferido, que era vislumbrar futuros. Calcular passados e futuros fazem de um menino um deus belo e perturbado.

No seu carrossel de passados e futuros ele disparou sua etérea e psicoativa roleta russa acertando o passado. E, no caso, um passado razoavelmente recente. O menino pensava na menina e no que ela havia respondido a ele em uma carta, por ele recebida na antevéspera do natal, agradecendo por ele estar sempre presente. Então ele compreendeu que estava, de verdade presente. Que sempre esteve presente com maior ou menor intensidade. Ele sabia que coisas como esta fazem de um menino um deus.

Ceia de natal. Fogos de reveillon. Nada disso é para meninos mais interessante que as férias de janeiro. E todas as crianças têm férias em janeiro. Ainda que umas possam passear pra longe com os pais e outras não. Sofisticações materiais à parte, meninos sempre viajam, de uma forma ou de outra. Pois bem. Naquele janeiro eles – como jovens afortunados pela sorte – se encontraram. Era uma linda praia pouco freqüentada do litoral do Rio de Janeiro. Entre Rio e Santos. Suas famílias foram passar uma semana nesta praia, que tinha pousadas e camping.

– Você já veio aqui?

– Primeira vez.

– Você sabe nadar?

– Claro!

– Vamos nadar então até aquelas pedras logo ali?

– Vambora! O menino topou. E chegando eles nas pedras viram que estavam bem distantes dos adultos, que nem mais se podia ver, dada a curva feita ao redor de uma pedra enorme. O menino sabia que estava diante da clara possibilidade de tocar o corpo da menina. E tocar como um homem toca uma mulher. Ninguém a os olhar, só Deus. E isso era o pior, pois Deus é um satélite que vê tudo. E se o que fazemos é pecado... pronto: perde-se a dádiva do paraíso eterno. A menina? Ela não pensava tanto em Deus. Não como ele, o menino pensador de culpas e desculpas, de desculpas e culpas. Ela tinha mais medo de morrer afogada do que de Deus. Foram os pequenos atletas de verão. Chegando à outra parte da praia, eles começaram a construir um castelo de areia. Ele, já habituado a fabricar pontes para brincar de carrinho, foi o arquiteto do castelo. Ela ajudava. Pés na areia úmida. Vento do mar. Céu azul, porém com muitas nuvens. As mãos que construíam o castelo se tocaram uma vez sem querer. Uma segunda vez, de propósito. Uma terceira pra ficar. E trocaram carícias. Não eram eles exatamente crianças. Seus sexos estavam prontos havia tempos. Pêlos, menstruação, masturbação e até uma ou outra aventura sexual mais superficial. Trocaram carícias delicadas. E, por fim, se beijaram. E o beijo tinha a delicadeza daquela idade. E todos sabem a delícia dos beijos da tenra idade. Nas pedras a diante havia um pequena caverna. Foram para lá. Ninguém os via. Não precisavam se esconder. Mas, sabe lá... e Deus? Deus os via? Talvez dentro da caverna Deus tivesse um pouco mais de dificuldade para os encontrar. Esfregaram e apertaram seus copos um contra o outro com mais vigor que carinho. Tiraram a roupa de banho colorida que cobria seus sexos e peitos. No quase escuro da entrada da pequena caverna fizeram amor. Experimentaram seus sexos como crianças que testam os encaixes de legos. Não que nunca tivessem experimentado seus sexos com outras pessoas. Para a sua pouca idade, até que eram, surpreendentemente, um tanto conhecedores da coisa. Experimentaram em várias posições. Afinal, é assim que se faz com legos. Ele sorveu sua vulva como um menino do interior chupa uma manga. Ela tremeu de corpo inteiro, e tentava pronunciar a palavra “sublime” – seu vocabulário era rebuscado para a idade. Ela sorveu seu pênis como um doce. Orgasmo? Pra que pessoas daquela idade mental precisariam de orgasmos simples ou múltiplos, numa insensata tabela? Tiveram sim, sensações físicas intensas. E tinham muita pressa para experimentar. E lutavam, de certa medida, contra medos diversos, culpas sem razão de ser. Isso não deixou que gozassem tanto. Deixemos o detalhe orgasmo de lado, por ora. Qualquer orgasmo seria menor que a intensa, bela e doce nevralgia confusa daquele momento. Seus olhos brilharam com a claridade que vinha da areia muito branca. Parece que queriam chorar, pois em poucos momentos da vida estiveram tão felizes. E assim choraram. Só um pouco. Algo os dizia que haviam nascido para aquele momento. Voltaram para a beira do mar e para o castelo que estivera solitário por um tempo. Sentaram-se novamente ao lado do castelo. Mãos dadas. Contemplam o mar e os pássaros que voam por ali. Sentem uma imensa alegria e sentem tesão. São pássaros.

– Vamos voltar?

– Vamos sim. Minha mãe deve estar preocupada.

– É. Meu pai também! Se ele souber estou frita!

E teve a volta às aulas. E teve um ano inteiro. E o menino viveu aquele ano a calcular passados e futuros. Ele não se importava mais com o que Deus pudesse estar pensando. Ele já sabia-se próprio um deus – não que usasse esta palavra. Ela? Também sabia-se assim. Ela sabia que ele estava, de alguma forma, por perto. Ainda que a geografia não fosse exatamente favorável a isso. Lembravam do verão. Faziam telas com tintas variadas onde o que se pintava era uma mistura de passado com futuro. E eles haviam, naquele verão vivido, descoberto mais um pedaço do véu da vida. E descobrindo véus, eles sabiam – não exatamente com esta palavra – que eram deuses. E ele escrevia, com a sofisticação de um criador minucioso, sob a névoa espessa da memória, suas lembranças.

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