Homem sem Alma

//Aos pássaros e aos dias,

À sombra e à chuva.//

Sou um homem sem alma. Não distribuo sorrisos fáceis, nem retribuo os olhares que me oferecem – muitas vezes apressados pela vida que passa nas ruas estéreis desta cidade.

Do alto vejo senhoras a fofocar, garotos a brincar, casais provando do amor entre árvores que perdem suas folhas com a chegada do outono.

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B., 29 de maio,

Meu amado,

enxugo as lágrimas frias nesta manhã nublada acometida por saudades, de teu corpo junto ao meu, de tuas palavras gentis, do grave de tua voz. Não entendo porque partistes, anjo querido, tão de repente. Tu eras senhor de meus sentimentos, era a ti que dedicava meus sonhos. Por isso senti dor de punhal perfurar o peito, quando te vi pela última vez.

Não me importa se nossa cama tem cheiro de outra, pois sinto falta de teu cheiro. Não fiz questão de presentes caros, quando sabia que teus olhos de esmeralda eram meus. Recusaria o manjar dos deuses só para sentir teu gosto outra vez.

Anjo amado, onde estás agora?

A quem dedicas tuas palavras? Tua música?

Por que decidistes partir tão cedo? Por que não me levastes contigo na ponta enferrujada do velho punhal.

Apenas quando eu respiro é que penso em você.

Da tua, e sempre tua, M.

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Sou um homem sem alma. Não passava dos vinte e poucos, vivia entre os poetas, bebia com os boêmios, respirava arte, arte de viver. Era solitário, mas nunca estava sozinho. Escrevia pequenas histórias, tocava um pouco aqui e ali, arrancava com o arco o grave mais puro e com ele as lágrimas de minhas pequenas.

Eu tinha a minha, mas dormia com outras. Não me julgue, não era traição, nunca traí o sentimento. Era só corpo, só gozo.

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B., 17 de maio,

querido,

não posso ser inteira se me falta uma parte, tudo é tão escuro, tudo é tão frio. não brilha o sol, o peito arde. os acordes melancólicos de minhas lembranças são como aqueles que fazias com um violoncelo. meu réquiem é tudo que escuto, não tenho forças nem mesmo para completar essas palavras.

m.

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Eu me tornei um homem sem alma. Pois a vida não tinha mais graça, e eu buscava algo de novo. Meu corpo, consumido, não tinha valor algum, por isso dei-lhes minha alma. Deixei para trás tudo que sempre fora de valor. A música, as palavras, o sentimento. Deitei-me com tantas, tomei vidas em minhas mãos.

Não me critique, ainda, pelas vidas que tomei, precisava ser novamente senhor de meu destino; mas não consegui, nem mesmo, ter minha alma e volta. Deixei de sorrir e de olhos fechados a via passar.

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B. 29 de abril,

Amor,

Pergunto o que posso fazer para te ter de volta, questiono meus sentimentos, pergunto onde eu errei. Se voltar, nunca mais reclamarei; se for meu novamente, farei tudo que queres.

Não posso ficar sem você por isso, dar-te-ei tudo que sempre pedistes. Volta e tudo irá mudar, não te procurarei nos bares, não pegarei no teu pé, não vou mais te seguir. Volta, meu anjo, volta para mim.

Não há vida sem você.

sua, sempre sua, M.

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Um dia, eu tive alma. E agora ei de contar como a perdi.

Era uma noite qualquer em que voltava de um bar comum. Havia estado com meus amigos e entre tragos e pequenas, um sorriso tirou minha atenção.

Tinha alguém me esperando em casa, mas isso não mais importava, tantos anos esperando pelo momento de minha morte e ela estava ali. “A morte vem, e de repente, você se torna imortal”, naquele momento eu perdi minha vida e minha alma. Deixei tudo que acreditava e a segui, e nos amamos. Era vinte e seis de fevereiro e naquela noite sem lua, perdi minha alma.

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B., 08 de março,

Seu grande filho da puta,

Como tens coragem de fazer uma coisa dessas? Como podes largar tudo e seguir assim? Sem rumo, sem dinheiro, sem nada pra mim. Foram anos agüentando você, suas bebedeiras, suas farras e com o que eu fico agora? Dívidas e mais dívidas, seu grande filho da puta, arrumou um rabo de saia e faz isso? Como pode ter coragem? É a morte o que mereces, nem mesmo uma lágrima será derramada. Como ousa fazer isso, como ousa morrer.

***

Perdi minha alma e nunca a tive de volta. Não que me tenha feito alguma falta, verdade seja dita; verdade seja – também – que não ergui mais os olhos quando pouco tempo depois ela me deixou.

Minha alma se foi com minha razão, e tudo em nome de uma mulher. Não era a mais bela, não era a mais pura, mas era minha. E todos os dias que estivemos juntos ela me bastou, seis meses sem me deitar com outra pequena, seis meses que deixei meus amigos, a boemia, os sonhos, tudo por ela. E ela se foi, e era uma noite sem cores, nublada, silenciosa. E foi a noite em que não ter alma me fez bem, pois se a tivesse ela se teria partido. Devia era ter escutado meus amigos, que sempre diziam quando ela se aproximava: Não olhe estes olhos, eles serão tua ruína. E foram não posso negar.

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B, 26 de fevereiro,

Amado,

Não consigo acreditar no que me dizem, não podes ter partido. Não assim, não sem se despedir de mim, não podes ter partido.

As nossas juras e nossos sonhos não realizados e você vai embora tão de repente, não pode ser real, você não foi.

Nunca faria isso, não você meu anjo, querido, não você, meu anjo guardião, que tocou minha alma, em vibrações, de cordas graves.

Mentem para mim, eu sei, não é você que se foi, não você, não agora.

Espero de braços abertos,

M.

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Sou um homem sem alma. Também sem razão, sem sentimentos, sem sonhos, sem futuro. Perdi tudo no jogo de amor, não me faço inocente, pois sabia que iria acabar caído, mas ainda assim andei a beira precipício chamado amor. Devo admitir que achei que essa queda tomaria mais tempo. De que vale a vida de um ser sem alma? Nada! Por isso que entreguei minha vida em ponta de punhal, queria trazer justiça aos meus sentimentos. Sonhava que o gesto lembrasse ao mundo das dores que essa maldição trás, mas deixei apenas uma estátua sem alma, numa cidade estéril de onde observo o amor nascer e morrer, e as pessoas o seguirem.