BETO E VIRGÍNIA, VIRGÍNIA E BETO
Beto - Agora eu vejo um barco e ele cavalga as ondas rumo ao infinito.
Virgínia- Eu sinto o sol, que sobe calmo, e seu calor duela com o frescor da brisa clara da manhã.
Beto - O barco e sua vela branca contrastam com o azul do mar, que por sua vez contrasta com o branco das nuvens no horizonte, que contrasta com o azul do céu, e o azul do céu é diferente do azul do mar.
Virgínia - Olhe as ondas, vem como se puxadas por um cordão invisível, crescem, ganham forma e se desintegram, em milhões de gotas, nas pedras imóveis.
Beto - Quantos caminhos terá o oceano? Tão vasto! Às vezes tranqüilo, outras tão violento, que destino aguarda esse barco?
Virgínia - Daqui do alto, tudo parece distante como uma fotografia, a solidez da rocha sob nossos pés é um conforto. Lá embaixo a luta da água com a terra persiste, aqui tudo em paz.
Beto - Olhe! Alguém pulou do barco, será um mergulhador em busca de tesouros? O barco parece imóvel, mas mesmo na sua imobilidade há movimento.
Virgínia - O movimento está em mim, a paisagem ainda é a mesma, sou eu quem transforma o mundo.
Beto - Eu gostaria de navegar, a segurança de terra firme não me satisfaz, sempre há algo por descobrir, algo que me chama.
Virgínia - Daqui do alto da para ver o mundo todo, o horizonte só é um limite para a falta de imaginação.
Beto - Daqui do alto dá vontade de voar, sentir o ar correndo pela pele, saltar no vazio e planar até um ponto desconhecido.
Virgínia - Olhe! O mergulhador voltou a superfície, e agora se pôs há secar, exposto ao sol.
Beto - Sair de um mergulho é como voltar de um sonho, uma parte nossa fica para trás. Na sonolência do acordar ainda podemos tentar lembrá-la, um segundo de lucidez e a perdemos para sempre.
Virgínia - Nada se perde, tudo se guarda na alma.
Beto - Olhe atrás de nós, nossa casa, o vento dá movimento para as árvores a sua volta.
Virgínia - Vamos caminhar, não nos guardemos, a vida se consome do mesmo jeito, e o que fica a morte leva.
Beto - É bom sentir a areia se comprimir sob os pés, e ver o mato crescer livre na beira do caminho.
Virgínia - Um caminho sempre deve nos levar aonde queremos.
Beto - Minha alma está repleta de cores e formas, mas as cores e formas não dão sentido a minha alma.
Virgínia - As cores dão vida às formas, mas a alma das formas está nas sombras.
Beto - O mundo não é um desenho, e o meu caminho é de luz.
Virgínia - Não existem sombras sem luz, mas será que existe luz sem sombras?
Beto - Se tudo estiver iluminado por todos os lados...
Virgínia - Se tudo for luz não se enxerga nada, e se não se enxerga é o mesmo que estar na escuridão.
Beto - Sem luz não existem cores.
Virgínia - Sem sombras não existem formas.
Beto - Minha alma está cheia de formas e cores.
Virgínia - Já passamos da nossa casa, vamos voltar?
Beto - Não! Nunca segui por aqui, vamos ver a onde vai dar.
Virgínia - Você sempre quer ir além, não sente prazer no que conhecemos.
Beto - O que conhecemos me limita.
Virgínia - O que conhecemos é o nosso mundo.
Beto - Eu quero mais do que sou.
Virgínia - Tudo bem, vamos, não tenho medo.
Beto - Eu caminho e a cada passo deixo um instante morto.
Virgínia - Cada passo, para mim, é uma barreira que quebro.
Beto - O mundo está vivo, e não precisa de mim para existir.
Virgínia _O mundo não se importa se eu não existir.
Beto - Olhe, ali na frente existe um portão. Por trás dele uma neblina não me deixa ver além.
Virgínia - Não é um simples portão. Parece mais um portal e em cima dele tem algo escrito, vamos ler.
Beto - É engraçado como aqui tudo está nítido e lá, não se enxerga nada.
Virgínia - TODO AQUELE QUE VISLUMBRAR O PARAÍSO NUNCA MAIS SERÁ FELIZ.
Beto - É isto que está escrito?
Virgínia - Sim.
Beto - Vamos voltar para casa.
Virgínia - Não! Agora quero ir.
Beto - Tenho medo.
Virgínia - Foi você que quis vir.
Beto - Agora não quero mais.
Virgínia - Eu vou.
Beto - Está bem, eu te sigo, mas ...
Virgínia - O que estamos fazendo aqui, de volta à beira do penhasco. Lá em baixo o mar não parece o mesmo.
Beto - O estranho é que era o começo da manhã e agora, fim da tarde. Olhe como as nuvens parecem lágrimas de fogo, derramadas pelo céu.
Virgínia - O universo chora, minha alma chora.
Beto - Procuro me lembrar, mas fragmentos de paz se diluem no nada.
Virgínia - A noite cai, o dia escurece, e eu preciso de luz.
Beto - Olhe! O barco afundou.
Virgínia - Aquilo não é mais um barco, são apenas pedaços de madeira levados pelas ondas.
Beto - O que será que aconteceu com o mergulhador? O tesouro estará perdido para sempre?
Virgínia - Não agüento ficar mais aqui, tenho que procurar o portal. Onde estou já não me satisfaz.
Beto - Não tenho aonde ir, o mundo está inteiro dentro de mim.
Virgínia - Tenho que voltar lá, mesmo que morra tentando. Adeus.
Beto - Ela se foi, enquanto eu, narrador de mim mesmo, contemplo um horizonte sem esperança.