meu marido amava um homem

Não entendia aquela amizade do meu marido Vitor com Wilson. Há muita gente que poderá pensar que fosse ciúme de minha parte. Admito que até haja um pouco de ciúme, mas este sentimento não explicava tudo.

Meu marido havia conhecido o Wilson na quinta série, ambos tinham onze anos de idade e nunca mais se separaram... Eram amigos inseparáveis.

Até aí, tudo bem. Mas eles eram mais que irmãos e provarei no que vou contar através da minha carta. Dois anos depois de se tornarem amigos, Wilson lamentavelmente conheceu as drogas e neste caminho que sempre leva ao abismo, ele passou a ser usuário de craque... Ele tinha quatorze anos quando seu pai, sem ter mais paciência, ao vê-lo completamente grogue pelo uso da droga, o jogou pra fora de casa, mas foi um jogar literal, tanto que Wilson caiu na calçada e lá ficou deitado e tremendo.

Quem foi em socorro de Wilson foi Vitor. Acolheu o amigo com todo carinho e o levou pra casa. Na época os pais de meu maridor, foram contra. Não podiam ficar com aquele menino viciado em casa, até mesmo pelo medo que uma maçã podre contaminasse a outra.

Noutras palavras, medo de que o menino viciado levasse também Vitor para o vício.

Vitor pediu aos pais um pouco de compreensão, não seria pra sempre que o menino ficaria na casa deles, seria até as coisas se acalmarem em sua casa e seu pai o aceitasse de volta.

Nesta, Wilson ficou na casa de meus sogros por duas semanas. Foi quando Vitor foi conversar com o pai do amigo e o convenceu a aceitar o amigo de volta. Embora, o pai tivesse imposto aquela condição. Se o filho voltasse a usar drogas seria enxotado de maneira ainda mais violenta.

Todo feliz, Vitor veio conversar com o amigo, falou do perdão e da condição do pai dele. Wilson pra alivio dos meus sogros voltou pra sua casa.

Mas foi por pouco tempo, quem tem este vício maldito não consegue se livrar com facilidade assim e Wilson voltou para o craque e mais umas cem vezes, foi acolhido por Vitor nas calçadas da vida.

Quando Vitor completou 16 anos nós nos conhecemos e no dia do nosso conhecimento ele comentou algo comigo que me chamou à atenção:

-Sabe Lia, hoje sinto que é um dia especial na vida, estou te conhecendo e tenho certeza de que nunca mais iremos nos separar, estou feliz, muito feliz, apenas uma coisa me atormenta...

-Oh, Vitor, que bonito ouvir isso de você, também estou muito feliz por te conhecer, mas o que lhe atormenta?

-É que hoje pela manhã, fui levar meu melhor amigo pra uma clínica de viciados em droga e quando eu fui embora, ele teve que ser agarrado pelos seguranças da clínica, pois, veio correndo e gritando dizendo que iria morrer se ficasse separado de mim...

-Como assim?

-É que somos amigos inseparáveis desde que tínhamos 11 anos, até na minha casa ele já morou por uns tempos e achou que era uma traição que eu o deixasse na clínica...

Por este diálogo entre mim e Vitor acho que já deu pra entender o tamanho da amizade deles e talvez explique o motivo do meu ciúme, até porque na seqüência do diálogo aconteceu o seguinte:

-Mas agora você me conheceu Vitor e, portanto, não está mais sozinho.

-Sim Lia é verdade, é maravilhoso começar este namoro com você, mas ainda assim, há um vazio pelo falta do amigo em meu coração...

Um mês depois de estarmos namorando fui conhecer o Wilson. Vitor foi fazer uma visita ao amigo na clínica e levou-me consigo. Pelo olhar do Wilson pude ver a imensa felicidade que sentiu ao rever Vitor, mas ouvi quando ele falou pra o meu namorado:

-É “Vitão”, agora que você arrumou uma namorada, você vai me esquecer.

-Nunca vou te esquecer “Ilsão”, você é meu irmão e sabe disso.

-É eu sei, mas agora vai ser diferente.

-Prometo pra você que nunca ninguém irá interferir em nossa amizade...

E ao longo da convivência fui entendo que a promessa não era apenas da boca pra fora, mas pra valer, porque quantas vezes eu tive que ficar sem meu namorado, porque ele avisado pela mãe de Wilson saia correndo pra socorrer o amigo, que estava passando mal em alguma sarjeta da vida.

Pra que se tenha uma dimensão disto tudo, basta dizer, que no dia nosso casamento, meu noivo se atrasou, por ter ido pagar uma fiança numa delegacia. Wilson havia sido preso pelo uso de drogas e Vitor fazia questão que ele fosse seu padrinho de casamento.

Ele que já havia sido motivo de tantas brigas entre nós, no dia do nosso casamento causou um desentendimento feio entre mim e Vitor, uma vez que fiquei envergonhada de ver Wilson no altar todo barbudo e mal vestido, praticamente saiu da cadeia e foi pra igreja e isso sempre causa comentários entre os convidados.

Mas fui aprendendo na marra ao longo do nosso casamento, que não haveria outra maneira de continuarmos casados, ou, eu teria que aceitar a amizade deles, ou, teria que me separar.

Como era amada e amava, preferi aceitar a amizade deles, mas com uma condição, que se vissem, que se encontrassem, sempre longe de mim e da minha casa. Já que eu passei a odiar o Wilson. Afinal, ele não tinha jeito.

Meu marido o socorria sempre, conseguia clinicas pra que se internasse e sempre a mesma coisa, Wilson ficava limpo uns três meses, foi o máximo que havia conseguido e voltava para o vício. Mas houve um motivo forte pra que tomasse raiva, ou, é duro falar, mas até mesmo ódio do Wilson...

Ele ficou devendo um dinheirão para traficantes e foi ameaçado de morte. Foi quando mandou uma carta de despedida para o Vitor, do tipo: “Que Deus lhe abençoe amigo e irmão, obrigado por tudo o que você fez por mim, se outra vida existir, lá no inferno, brigarei com diabo pra que nunca lhe faça qualquer mal”.

-Coitadinho Lia, eu não posso deixá-lo nessa hora.

-Larga de ser bobo Vitor, não vê que esta carta é pura chantagem emocional.

-Eu conheço o Wilson, ele seria incapaz de me chantagear e não vou permitir que ele seja assassinado.

-Vai fazer o que então, vai arrumar este dinheiro onde?

-Vou vender o carro...

-Sê não vai fazer isso! Vai prejudicar sua família, a mim, seus filhos, pra salvar a pele de um bandido.

-Wilson não é um bandido, é um dependente de drogas.

-Mas é um vagabundo, sem caráter, que foi ajudado por você um milhão de vezes e não se emenda.

-Não tem mais conversa Lia, vou vender o carro pra salvar a vida do Wilson.

-E se eu me separar de você por isso?

-Se você acha que nosso casamento tem preço e este é preço, você é livre pra fazer o que quiser.

Acabou de falar entrou no carro e saiu. Era um sábado pela manhã e só voltou pra casa e sem o carro quando já começava a escurecer. Ficamos três dias sem nos falar. Quando voltamos a nos falar foi que eu disse:

“Já vi que não tem jeito, você nunca vai deixar de gostar desse cara. Mas acontece que te amo e quero continuar casada com você. Então, quero propor que o encontre, mas sempre longe de nossa casa. E não fale mais do nome dele perto de mim”. Ele respondeu que estava de acordo.

Sem o carro e precisando de um veículo para trabalhar meu marido comprou uma moto. Seria por pouco tempo, até que ele ganhasse condições financeiras pra compra outro carro. Mas o destino às vezes é tão cruel. Quatro meses depois de estar com moto, meu marido saiu pra vendê-la. Era de novo um sábado e ele voltaria depois pra me apanhar. É que juntos iríamos depois a uma loja escolher um carro. Acontece que ele não voltou.

Na marginal Pinheiro, quando ultrapassava um caminhão, o motorista que alegou não tê-lo enxergado, saiu à esquerda pra também fazer uma ultrapassagem e passou com as rodas traseiras sobre a moto e Vitor. Não houve socorro, meu marido morreu no local.

Durante o velório, eu desesperada e completamente fora de controle não queria permitir que Wilson entrasse pra chorar a morte do amigo. Foi quando meu pai e um tio me abraçaram e com palavras de conforto foram me levando pra o lado de fora. Sentados num banco sob uma arvore eles disseram:

-Você não pode fazer isso minha filha, por mais que Wilson tenha errado ao longo desse tempo, ele não tem culpa sobre a morte do seu marido. E tem o direito de se despedir do amigo. Você sabe que se o Vitor pudesse falar neste instante, ele lhe falaria exatamente isso que estou lhe falando.

Acabei achando que eles tinham razão. E enquanto permaneci lá fora, Wilson rendeu suas homenagens ao amigo.

Cinco meses depois da morte de meu marido. Ouvi a buzina de um carro em frente minha casa. Sai e meus filhos curiosos vieram atrás. Era Wilson, havia comprado um carro zero quilometro e foi me entregar. Não queria aceitar, mas ele me entregou os documentos já todos em meu nome e disse:

-Não é um pagamento, porque uma vida não se paga, uma amizade não se paga, é apenas uma pequena parcela do bem, perante o mal eu fiz pra você e sua família.

O carro ficou na garagem por uns quinze dias, sem que eu conseguisse entrar nele, cheguei até pensar que viesse de algum dinheiro sujo. Mas meu pai foi até minha casa e contou que desde a morte de meu marido, Wilson havia abandonado as drogas. Papai informou ainda que ele era um gênio em termos de informática. Estava trabalhando e ganhando um excelente salário.

Foi quando entrei no carro e sai com meus filhos e meu pai pela primeira vez. Mas uns dois meses se passaram e meu pai, foi me avisar que Wilson estava em sua casa e queria falar comigo. Eu de novo não queria ir, mas meu pai me convenceu do contrário.

Wilson neste dia conversou comigo e disse que estava ganhando muito bem e queria me ajudar com um dinheiro mensal. Eu recusei, não queria isso de jeito nenhum. Foi quando Wilson falou:

-Lia, a minha motivação pra largar as drogas e me dedicar ao trabalho, foi esta possibilidade, não de substituir o Vitor pra você e sua família o que seria totalmente impossível, mas a possibilidade de ajudar pelo menos com um pouco a família que ele tanto prezava, agora que ele não pode mais estar aqui. Por favor, aceite e assim você me manterá vivo e longe das drogas.

Até hoje ele ajuda minha família. Agora são passados cinco anos da morte de meu marido e Wilson não falhou nem um mês sequer. É justamente este dinheiro que me dá condições de manter meus filhos em boa escola particular, pois, a pensão que recebo pela morte do Vitor é muito pequena.

Fiz questão de contar esta história pra que se possa refletir sobre esta amizade. Como é possível que dois amigos tenham se gostado tanto, se respeitado tanto, passando por cima de tantas diferenças, ultrapassando tantas barreiras, vencendo tantos preconceitos. Esta é a verdadeira história de dois homens que se amavam.

Paulinho Boa Pessoa
Enviado por Paulinho Boa Pessoa em 18/12/2008
Código do texto: T1342701