Estela do mar
Quando ela saiu de casa a sensação foi boa. Olhou para a estrada e viu que ela lhe chamava. Viajar era uma necessidade para qual a muito não dava ouvidos, mas que agora, sobretudo agora, não podia negligenciar.
Com freqüência se via olhando a estrada, e sentia uma vontade de ir por ela. Há alguns anos fazia longas caminhadas, seguindo a estrada e vendo o tempo, olhando as casas as árvores, mas agora com mais de sessenta anos não podia mais fazê-las muitas vezes.
Entretanto sabia que agora era a hora, deveria partir imediatamente. Era uma mulher sozinha e não tinha nada que não pudesse deixar para trás. Arrumou as malas, escreveu um bilhete e deu um telefonema. Estava pronta.
Abriu a porta, o dia nem tinha amanhecido, mas a claridade da manhã avançava em direção ao oeste anunciando a aurora. Com apenas duas pequenas malas, pequenas o suficiente para que uma senhora pudesse carregar, Maria saiu de casa, e não olhou para trás, não que tivesse sido fácil, mas ela estava resoluta.
Quando o táxi a encontrou, o sol despontava no horizonte, “adequado” pensou ela, “é adequado que um nascer do sol marque o início do meu caminho, espero ter a sorte de que um por do sol o encerre!”. Embora pensasse assim não havia escolhido essa hora para partir, ela foi uma necessidade, e pensar nisso fez Maria sentir-se fugindo, mas ela afugentou esse pensamento. Ela estava começando algo que há muito protelara, agora começava seu caminho de redenção após vinte anos de provação.
O carro seguiu a estrada, e ela se sentiu bem, como há muito não sentia. Relaxou e tentou cochilar, essa parte do caminho ela conhecia bem, e esperava ansiosamente pelos caminhos novos.
Há algo de especial em seguir viagem, algo na paisagem que passa, nos caminhos novos que vemos. É o encanto da diferença, e a sensação de estar em lugares inéditos.
Uma criança tem a capacidade de se encantar com as pequenas coisas, todas as coisas novas deslumbram, as pequenas e as grandes, enchem os olhos de um brilho mágico. Os olhos de um adulto também brilham assim quando encontra algo novo, algo que fica cada vez mais difícil com o passar dos anos. Entretanto a outra situação, quando ele se apaixona.
Viajar é algo importante, pois quando se viaja, percorrendo a estradas, o adulto verá o novo mundo que a margeia, seus olhos se deslumbram. É como ser criança mais uma vez. “Às vezes só encontraremos consolo dos trabalhos de uma vida na estrada, e nos caminhos novos que ela tem a oferecer” pensou Maria e caiu numa sonolência agradável embalada pelo balanço do carro.
Ela viajou muitos dias de ônibus, sempre seguindo o litoral e passou por dez cidades em três meses, em todas caminhou longamente pelas praias, fez poucos amigos e sempre partia sem avisar.
A estrada curava seu coração aos poucos, mas às vezes, durante a noite, quando o único som era o das ondas, envolto no ruído do mar, parecia ouvir um chamado, uma voz que dizia um nome. Algo perdido na memória que tentava aflorar.
Um dia, olhando num pequeno mapa rodoviário ela enfim entendeu. Num estado do nordeste estava uma pequena cidade, um nome que soava familiar, Porto Azul e que ela soube ser o que o mar lhe sussurrava durante as noites. Seguiu para lá no outro dia, tomando o cuidado de sair ao nascer do sol. Tomou o primeiro ônibus que pode.
A cidade era maior do que esperava, um balneário, ela viu que a cidade começava a encher-se de gente. Desceu na rodoviária, tomou um táxi para a pequena pousada onde ficaria enquanto fosse conveniente.
A cidade era confortável, ruas com paralelepípedos ao invés de asfalto, e cheia de pequenas casas, sem portões e muros, pintadas em cores vivas. Todos eram sorridentes e simpáticos a primeira vista, e aparentavam uma simplicidade acolhedora. Quando chegou o fim da tarde de seu primeiro dia na cidade, e o tempo se tornou mais brando ela saiu para caminhar, desta vez não pela praia, mas pelas ruas estreitas da cidade. Encantou-se pelo colorido de suas casas.
Quando a lua apareceu cheia no céu ela sentiu frio. O inverno estava chegando, e parou numa pequena cafeteria. Pediu um café e esquivou-se das conversas simpáticas da garçonete. Saboreou sua bebida ainda bem quente, inspirando fundo para sentir o cheiro entrar pela sua cabeça, aguçando seus sentidos. Sentiu aquecer-se. Na hora de pagar surpreendeu-se duas vezes, a primeira porque não tinha dinheiro, descuidara-se e acabou ficando sem, sentiu-se um pouco embaraçada, pois na loja não aceitavam-se cartões de crédito ou débito. O segundo motivo foi quando um senhor de cabelos grisalhos ofereceu-se para pagar a conta.
Ele surgiu sem ser percebido, quando ela menos esperava. E ofereceu-lhe o pouco dinheiro necessário.
_ Não, eu não posso aceitar_ respondeu ela prontamente, embora soubesse que não deveria recusar, afinal não teria como pagar a conta.
Olhou nos olhos dele, ele sorria. Tinha os cabelos grisalhos e o rosto marcado pelo tempo, provavelmente mais de sessenta anos de idade, e seus olhos se espremiam enquanto ele sorria. Ela sentiu que aquilo era familiar, sentiu-se um pouco mais à vontade e aceitou a oferta.
Ele logo em seguida perguntou:
_ Eu não te conheço de algum lugar?
_ Por favor, eu não tenho mais idade para passar por isso_ Maria respondeu sorrindo.
_ Eu sei, mas falo sério, não te conheço de algum lugar?
Ela se afastou um pouco. Seguiu até a porta para sair. Antes disse.
_ Pouco provável, eu cheguei aqui há pouco tempo. Só se for de outro lugar.
_ È possível, eu moro aqui há dois anos, mas vim de Brasília. E você.
_ Não, não vim de lá, nunca estive lá. Nunca me ocorreu visitar Brasília.
_ Se um dia quiser posso ser o seu cicerone. Sempre volto lá em agosto, é o mês em que os pores do sol ficam mais lindos.
Maria sorriu um pouco, e abriu a porta para sair. A porta deu um estalo seco. E então o senhor adiantou-se.
_ Você está indo?
_ Sim, vou caminhar na praia para aproveitar a lua.
_ Posso acompanhá-la? Desculpe-me, como fui rude, deixe-me primeiro dizer meu nome. João, meu nome é João Resende. E então, posso acompanhá-la?
Maria estava pronta para dizer não, mas quando ouviu o nome sentiu algo estranho, algo se removeu em sua mente. Ela sentiu-se jovem. Relutante, aceitou o convite.
A lua cheia tornava a noite agradável, o vento invernal também. Ela caminhou com o homem ao seu lado sem dizer muita coisa, mas surpreendeu-se com o fato de que estava bastante atenta a tudo que ele falava.
_ Como eu dizia _ continuou ele_ eu vim de Brasília pra cá há uns dois anos, quatro anos depois de ficar viúvo. Vim porque me sentia sozinho lá. Meus filhos e netos têm vidas agitadas e eu pensei que estar num lugar belo me faria bem, meu médico concordou, e na realidade minha pressão tem estado sob controle aqui. Sabe como são as coisas nessa idade. Acho que podemos saber que estamos velhos quando a solidão se torna boa companhia, não acha?
Maria sorriu, sentiu medo de parecer um riso irônico, mas se pareceu João não deu sinais de ter percebido. Ele continuou:
_ Eu sempre volto a Brasília, no natal, e em agosto. Nas férias os meus filhos me visitam. Volto em agosto para ver os pores do sol, são lindos. Eu pensei muito até sair de Brasília, e só consegui partir em setembro. Mas e você? Por que está aqui? Também é viúva?
Maria ouviu a pergunta e continuou andando sem responder. João, constrangido, desculpou-se.
_ Estou me intrometendo, certo?
Maria parou agora, olhou para ele, olhou fundo nos olhos dele. Os dois permaneceram ali parados olhando-se nos olhos. Ela o avaliou, e percebeu, novamente, que havia algo ali conhecido, como se eles tivessem feitos algo juntos e ela não se lembrasse, como um quadro famoso que você viu uma vez e se encantou e ao se deparar com ele novamente se esforça para lembrar o nome do pintor, e do lugar onde o havia visto. De repente sentiu-se completamente à vontade. Recomeçou a andar e ele a seguiu.
_ João, eu não sou viúva, mas estou separada do meu marido há vinte anos.
_ Você está de férias?
_ Pode-se dizer que sim, estive esperando, mas agora minha espera acabou.
_ E agora é seu tempo de descansar? Você está, sim, de férias então.
Maria evitou olhar para o senhor ao seu lado, disse:
_ Ou talvez em fuga.... Quem saberá?
_ Mas, sabe Maria, acho realmente que te conheço de algum lugar.
_ Talvez seja possível, mas podemos pensar sobre isso outra hora. Agora preciso dormir. Caminhei muito até chegar aqui.
Maria mudou o rumo, saiu da areia e subiu na calçada. João ficou ali parado na praia. Ela acenou quando já estava distante, e ele gritou:
_ Não quer companhia?
Ela, de longe, sacudiu negativamente a cabeça. Foi embora.
No outro dia, pensou muito sobre o estranho. A companhia tinha sido agradável. E no fim da tarde caminhou pela praia enquanto o sol se punha no horizonte.
Quando a noite estava quase completa e o céu se dividia entre o negro e o azul escuro, enchendo-se aos poucos de estrelas. Ele chegou e a encontrou exatamente ali onde na noite anterior se despediram.
_ Maria, lembrei-me!
Ela virou-se. E contemplou o rosto feliz dele. Ele sentou-se ao seu lado. Falou enquanto pegava em sua mão.
_ Lembrei-me de onde te conheço. Você nunca foi a Brasília, mas onde passou a infância?
Maria pensou um pouco e respondeu:
_ Minas, uma cidade chamada Patrocínio.
_ Isso, eu também, mudei para Brasília com 16 anos de idade. Vou te contar uma história: conheci uma garota com 14 anos de idade, num pequeno baile. Apaixonei-me completamente, com toda doçura e força da paixão juvenil, Maria era seu nome. Ela me amou também. Nos relacionamos, com paixão e inocência, durante duas semanas, e nos prometemos tudo. Juramos amor eterno, juramos estar sempre juntos. Não pôde ser assim, infelizmente. Ela se mudaria, iria para uma cidade maior. Embaixo de um enorme ipê, florido de amarelo, sentamos nos tapetes das flores caídas, e falei para ela de uma pequena cidade, no litoral, onde passei as férias anteriores. Fiz com que prometesse encontrar-me lá quando pudesse e nos encontraríamos, e viveríamos juntos para sempre.
Ele calou-se por um instante. Fez-se silêncio. Maria olhava o mar com olhos marejados. Virou-se para ele, olhou-o profundamente. João continuou:
_ Essa menina, chamada Maria, era linda, longos cabelos negros, corpo esguio. Naquele dia olhei-a nos olhos marejados, assim como estão os seus agora, e disse: “o tempo passará, Maria, e poderá ser que nos esqueçamos de tudo, mas...”
A voz dele falhou. Maria completou:
_ “... como nosso amor é verdadeiro, um dia nossos corações nos chamarão. Até lá seja feliz.”
Agora ela chorou. Chorou copiosamente. Ele a segurou nos braços. Com força.
_ Maria, embora, talvez, não tenhamos sido felizes até aqui, chegou a hora. Estamos juntos, nosso corações nos trouxeram até aqui.
Ela se soltou do abraço. Olhou-o nos olhos dele e disse:
_ Não, eu não sou aquela Maria mais, ela foi-se no tempo, gasta pela vida. Lacerada pelos longos dias, há algo que sobrou, mas ela não pode ser reconstruída.
_ Maria, por favor, a vida nos dá uma chance.
_ Pare! João, é muito bom ter de volta essas lembranças esquecidas, fez-me lembrar que já fui algo diferente do que sou! Eu sabia que te conhecia de algum lugar, mas nosso amor foi infantil! Você não sabe o que me aconteceu nesse quase meio século de separação.
_ Por que você não me conta?
_ Eu me casei aos vinte anos com um cara chamado Válter. Abortei na primeira gravidez e nunca mais pude gerar filhos. Vivemos um casamento mal assombrado por vinte anos, e depois meu marido sumiu, sem dar notícias. Ele simplesmente sumiu.Vinte anos depois reaparece, doente, morrendo de câncer. Eu não pude fazer nada além de fugir. Ou simplesmente sair de casa. Depois de vinte anos de espera angustiada, de solidão, de sentir-me culpada ele vem e enfim eu pude partir. A espera acabou, eu parti, mas agora é também meu tempo da cura, cura que ainda não veio. Eu não sou aquela Maria, não vim aqui para ser feliz para o resto da vida, este lugar é só parte do meu caminho. Nossa história não está continuando.
_ Sendo assim recomeçaremos, Maria! Seremos novos, teremos um novo amor. Nosso, criado agora. A partir da vontade de estarmos juntos. Eu te chamarei por outro nome, e você a mim. Quando cheguei aqui hoje, e te vi sentada contra o céu que escurecia, vi surgirem estrelas sobre a sua cabeça no manto negro do céu. Pensei, “ela estrela os céus, enfeita ele de estrelas com sua tristeza, como se suas lágrimas subissem aos céus”. Você será minha Estela, portanto, Estela do mar, aquela que procura nas ondas seu confortoe enfeita o céu de estrelas. Chamarei-te sempre assim, Estela, meu amor. Você me chamará de Òrion guardador de estrelas, ou de Amando, ou de qualquer outro nome.
_ Poderia te chamar de Lúcio, meu faroleiro, mas não agora! Agora não é tempo para isso.
João não respondeu, abraçou Maria. Beijou-a. Chamou-a de meu amor, de Estela. Dormiram juntos. E por alguns dias estiveram assim, vivendo o amor recriado. Ela o chamava de Lúcio, mas às vezes estava distante, pensativa. Muito conversaram sobre os dias longos passados, os dias que passavam e os dias que passarão. Maria se abriu para João. Mas chegou o momento. Um dia antes de o sol nascer ela estava com as malas prontas. Esperou o táxi chegar. Quando saiu a porta, entretanto, João estava lá.
_ Você realmente vai embora?
_ Sim, João, sei que você me entende.
_ Pensei que você estivesse feliz.
_ Estive bem todo este tempo, mas agora chegou o momento, ainda não estou curada, preciso seguir meu caminho. Algo ainda se revira dentro de mim, e esta praia não me oferece mais conforto.
_ Mas e eu, Maria?
_ Isso não tem nada a ver com você.
_ Você iria sem se despedir. Embora você sempre tenha deixado claro, e eu sempre soubesse que você partiria isso é doloroso. Entretanto te perdoarei se me prometer uma coisa.
Ela sorriu. Ele continuou:
_ Você me visitará em Brasília, irá me ver lá em agosto, no ano que vem, lá nos veremos. Pela última vez, ou pela derradeira ao menos. Lá você, Estela minha querida, enfeitará de estrelas os céus da minha cidade em um dos pores de sol deslumbrantes. Aí descansarei, e você poderá partir se quiser ou ficar se quiser. Prometa-me!
_ Eu prometo!
Ela o beijou na boca, e em seguida entrou no carro. Agora era ele quem estava marejado. Por último disse:
_ Olhe os meus olhos cheios d’água! Diga-me se agora eles não brilham! Você, por fim, estrelou meus olhos, querida Estela!
Maria foi-se, seguindo pelo caminho do mar, e não olhou para trás.