(Des)conhecidos
(Des)conhecidos
Quando ela entrou no ônibus, carregando aquele sincero sorriso cordial, nem percebeu que já havia deixado para trás uns vinte anos, uns vinte verões, uns vinte carnavais... E o tempo fora implacável. Também não notou que já não trazia o mesmo viço, que a gravidade havia se tornado uma inimiga e que o seu simpático riso a traiu, deixando frisos permanentes nos cantos dos olhos.
Assim também aconteceu com ele, um homem que estava no ônibus, desde o início da viajem. Distraído olhando a janela, em êxtase por causa do vento que vinha dela. O vento lhe causava uma sensação boa de liberdade, sacudindo os poucos fios que lhe restaram na fronte. Visual bem diferente ao de duas décadas atrás, quando se permitiu (ô rapaz sisudo) cair na folia, fazendo tudo o que podia e não podia só por diversão... Inventando uma alegria.
É engraçado como o tempo cronológico não condiz, para algumas pessoas, com o seu tempo interior. Para ela era assim. Em sua alma fresca ainda ouviam-se os tambores, a folia, os risos de um tempo que, para ela, não passou. As sensações daquela festa ainda lhe arrepiavam a pele.
Noites especiais. Três dias de loucura, da qual, ainda fomenta até hoje. Loucura que tatuou o seu ventre, mamou em seu seio e recebeu o seu nome. Só o seu nome...
A louca colombina nunca mais encontrou o seu pierrô. E como encontrar alguém a quem não se sabe o nome? Ela esqueceu de perguntar.
Ele, no entanto, nunca foi dado a loucuras. A única que cometeu deixou lhe um cheiro de lança-perfume, cores de confetes e a marca de um corpo que se movia como serpentina, em câmera lenta, sobre o seu. Ainda sonha com aquelas noites. E a culpa que carrega é a falta de um nome para a sua lembrança.
No ônibus, o único lugar vago era ao lado dele. Ela sentou-se naturalmente, segurando o ferro da cabeceira do banco a sua frente para apoiar-se ao sentar, evidenciando uma grossa aliança em sua mão esquerda. Deixando claro que apesar de o tempo ter parado, para ela, dentro; a vida seguiu o seu curso e o seu próprio tempo, fora.
Para ele também sucedeu assim. Embora sonhos e lembranças vivos, sua vida morta continuava sem sentido a passos lentos... Dura, sem cheiro ou sabor.
Uma curva mais fechada os aproximou. Uma breve troca de olhares e o inevitável...
“Essa senhora? Não, não pode ser!”
“É ele! Eu sei!”
Ele não tinha coragem de olhá-la mais uma vez. Afogou sua certeza na decepção de ver uma velha lembrança velha. Não olhou para não borrar a imagem que guardava nos sonhos. Não queria apagá-la e agora, restaurá-la diferente. Distraiu-se, de novo, com a janela.
Ela também não teve coragem de olhá-lo mais uma vez. Sentiu vergonha de si mesma por tê-lo reconhecido, por considerá-lo importante e por não saber como chamá-lo... Acomodou-se na cadeira olhando fixamente para frente, tentando esquecer a peça que o destino a pregou.
Sem olhá-la, ele pediu licença, desceu do ônibus e sumiu na multidão das ruas. Ela seguiu viajem, suspirando saudade e angústia em seu tempo particular.
Jamais tornaram a se encontrar. Esforçaram-se e conseguiram esquecer aquele casual encontro. Seguiram adiante como perfeitos desconhecidos.
Adriana Kairos