Alice não mora mais aqui
Ninguém sabia explicar como uma mulher culta e bonita viera a ser dona de boate. É claro que não era uma boate qualquer, era de longe a mais requintada. Sequer sabiam se Alice era seu nome verdadeiro. Quando ia para a cidade, vestia-se com discrição, à noite, no entanto, era uma rainha.
Vicente Cabral perdera o pai aos seis anos, a mãe aos oito e o padrasto aos 11. Vivia com uma tia alcoólatra cujo marido estava preso. Mas Cabralzinho soube administrar as adversidades da vida. Durante o dia vendia bilhetes de loteria, nos finais de semana garçom em clubes noturnos. Conheceu Alice ao lhe atender o favor de levar a revista Seleções e tantas outras que diziam a respeito da mulher. Tinha então quatorze anos. Cabelos encaracolados negros e vivia a cantarolar.
Alice se tornou uma líder entre as prostitutas ao levar a informação do que realmente era a AIDS. Com a revista Veja nas mãos, lia, explicava, orientava.
Mais tarde, conseguio junto à secretaria de Saúde do município, um convênio para que todo o mês, as ‘meninas’ fizessem exames ginecológicos e obrigo-as a abrirem uma caderneta de poupança. Era Alice que determinava em qual candidato elas deveriam votar. Tornou-se não só respeitada entre as meretrizes, mas em todo o bairro. Famílias com dificuldades financeiras? Alice socorria. Problemas de saúde, Alice tomava providências.
E conhecia segredos de muitos figurões. Sabia que o prefeito era viciado em cocaína e quem lhe fornecia era um agente federal. Sabia que o delegado era corrupto, que cobrava propina para alguns bordéis funcionarem e exigia menores para lhe satisfazer os desejos da carne; que o secretário de Saúde gostava de bater quando alguma menina desavisada lhe cobrava as doses de whisky; que o chefe do trânsito era também chefe de uma quadrilha que roubava carros na capital; quais eram os advogados que subornavam testemunhas, falsificavam provas e das muitas atrocidades cometidas pelos PMs.
Cabralzinho tornara-se íntimo de Alice. Toda tarde, antes de escurecer, os dois se retiravam para o quarto dela. Começou a andar bem vestido, fazia às vezes de office boy da 'casa' para pagamentos em bancos e o que fosse de interesse das demais. Um moço de confiança.
Naquela madrugada de sexta-feira ao fechar a janela do seu quarto para dormir, Alice viu o tenente Birgs bater sem piedade no jovem que cortejara sua amada da boate ao lado. Na manhã seguinte ele foi encontrado morto.
No sábado ela tomou a decisão. Escreveu duas longas cartas. Uma revelando em detalhes o que sabia ao Ministério Público e no domingo à tardinha, alegando visitar alguém, depositou-a numa caixa coletora.
Cabralzinho foi encarregado de levar as malas que foram jogadas do segundo andar quando já noite se fazia.
Somente na segunda-feira perto das 11 horas, quando da presença da promotoria e oficiais de Justiça, é que foi dado conta do sumiço da primeira dama da prostituição. Em cima de sua cama, a segunda carta dava instruções de como Sheila, a mais antiga da casa, deveria proceder doravante.
O prefeito não mais disputou cargo político, o delegado foi transferido, o secretário de Saúde morreu nove anos depois de cirrose e o tenente Birgs foi absolvido por falta de provas.
N.A: Esse texto contou com a valiosa colaboração (e com muitas discussões), da amiga e mais nova jornalista que acaba de estrear aqui no Recanto das Letras, Nora Aguiar. Recomendo. (Se eu não fizesse essa observação, mais puxões de orelha).