O Bêbado Filósofo
Ele chegou silencioso. Vinha com dois colegas de pinga para usufruir dos benefícios oferecidos pelo Governo aos desfavorecidos. Vinha para cortar o cabelo.
Tinha um rosto fechado, mas não era carrancudo. Não olhava para ninguém. Era como se tivesse vergonha de alguma coisa. Corpo moreno, uma barba espessa e sem cuidado. Magro, pele ressecada e pés descalços.
Chovia, mas parecia que o frio e a umidade não o incomodavam. Roupa rasgada, mas demonstrava preocupação em cobrir-se da melhor forma possível.
Sentou-se na cadeira que lhe foi oferecida e silenciosamente, como que pedindo desculpas pelo transtorno, ali ficou, à espera do corte desejado.
Os dois colegas barulhentos e risonhos puseram-se a palestrar. E o bêbado filósofo mudo.
Outro visitante chegou e começou a contar anedotas. Todos riam, menos ele. Parecia alheio ao que se passava ao redor.
De repente, abriu a boca. Voz possante, clara, num português perfeito, pôs-se a falar. Em termos filosóficos, declamava versos e pensamentos de grandes filósofos.
Enquanto isso, os colegas continuavam com as suas brincadeiras. Porém, a professora, que já tinha certo conhecimento do assunto, em meio às anedotas prestava atenção ao que dizia o bêbado filósofo. Ficou perplexa! Alguém o mandou calar, ele não deu ouvido. Estava num mundo só dele. A professora como que em estado de êxtase, dirigindo-se ao bêbado filósofo, e falou:
-Em que escola o senhor estudou? O senhor estudou filosofia? Todos pararam.. Um silêncio de expectativa se fez presente.
Ele com timidez, respondeu. -Eu estudei na Escola da Indústria. Sim, eu estudei Filosofia.
De repente, parecia que aquele corpo e coração tão sem valor e vazios de sonhos retornassem à vida! Era como se o corpo destruído pelo álcool recebesse o sopro do próprio Criador! O bêbado abriu a boca. Uma torrente de sabedoria manou daquela fonte.
Alguém o repreendeu. Um dos seus amigos o chamou de louco. Mas ele parecia não ter ouvidos, pois continuava seu discurso. Era capaz de arrebatar os mais altos doutores em Filosofia. Parecia um dos conterrâneos da Grécia Antiga! Parecia um discípulo de Platão ou Aristóteles!
Fez-se silêncio. Reverente a classe escutava. A professora parecia beber daquela fonte. Naquele momento, ela matava a sede que há tanto tempo sentia. Seu coração vibrava, pois nem entre os professores da faculdade ouvira tanta sapiência. De pé, silenciosamente o aplaudia.
De repente, ele se pôs a falar da sua vida. 'Em 1964, disse ele, já dependente do álcool, sem receber apoio dos familiares, sem ter o que vestir ou o que calçar,conheceu numa barraca uma pessoa, que ao ouvir a sua conversa na mesa ao lado, o convidara para sentar à sua mesa.Muito interessado perguntou sobre a sua vida. Admirado, o fez saber de um concurso que ia acontecer para o Banco do Brasil. Aceitando o conselho, no outro dia, catando uma roupa do pai (ele já magro, não cabia na roupa, teve que usar um cordão na calça). Na camisa cabiam mais três dele. Pegando uma sandália do sobrinho, nº 37, ele calçava 42! Foi à luta.Chegando lá, uma fila o esperava. Todos riam daquele homem esquisito. Logo o apelidaram de Papa-figo. Depois de muito esperar, percebeu que o álcool já lhe fazia falta. Pediu que guardassem o seu lugar e foi a uma barraca tomar umas doses, logo voltou sentindo-se melhor.Quando chegou a sua vez, um rapaz que fazia o atendimento achando que ele estava no lugar errado tentou tirar-lo da fila, mas o bêbado filósofo foi taxativo: - Vim para fazer o teste.Chegando numa sala, logo entregaram a prova e todos que se inscreveram, nervosos começaram a responder.Suas mãos tremiam, a ponto de não conseguir segurar a caneta e responder as questões da prova. Ele percebeu numa rápida olhada que a prova estava fácil. Seu coração palpitava. Sentia falta da maldita cachaça! Ah, se tivesse uma barraca ali ao lado da sua carteira! Mas o que fazer? O jeito era agüentar, pensava ele.
A primeira pergunta: O que é Comércio? Ah, isso ele sabia! Não foi a toa que passara dois anos na Escola da Indústria-respondeu a primeira com segurança.
A segunda: O que é comerciante? Pôxa, essa também sabia!
A terceira: O que é cheque cruzado? Respondeu com um sorriso nos lábios.As seguintes estavam no papo...
Voltou para casa. Quando se aproximava sua mãe o aguardava, furiosa o chamava de ladrão! Segundo ela, o bêbado tinha roubado o pai e o sobrinho. Ele contou o que tinha acontecido. Ela não lhe deu crédito.
Quando entrou em casa foi recebido mais uma vez com xingamentos. Devolveu ao pai e ao sobrinho tudo e contou ao pai o que tinha feito naquele dia. Ele também não acreditou.
Alguns dias depois, arranjou uma roupa que lhe coubesse melhor, uma par de sandálias, e voltou para receber o resultado do teste.Muita gente ali estava ansiosa para saber se tinha um emprego tão bom, garantido, que dava segurança, status... Ele silenciosamente chegou e esperou pela chamada.
Muitos saíram tristes. Não foram aprovados. Chamavam alguns nomes, eram dos que foram aprovados. Ele continuava esperando. Os que foram reprovados, não arredavam o pé, queriam ver tudo até o fim.
De repente o chamaram. Seu nome saiu por último. Sabem por quê? Ele foi aprovado e ficou em 1º lugar! Tinha tirado a nota máxima; 9,5!
Todos ficaram pasmos. Deram-lhe os parabéns. As mãos que lhe parabenizavam foram as mesmas mãos daqueles que o chamaram de papa-figo.
Poderia terminar a sua história por aqui, mas a vida é cheia de altos e baixos e por isso a caneta precisa continuar.
Chegando em casa, contou aos pais o resultado do teste.Ninguém acreditou.Seu pai o fez voltar e foi verificar de perto para ter certeza, ¨tirar à história à limpo¨. Mas a sua alegria durou pouco.
Alguém lhe disse: - Você pode ter passado em 1º lugar, mas nunca vai ser chamado porque é preciso um pistolão para ocupar o lugar.
O bêbado filósofo, muito triste, saiu dali para nunca mais voltar.
Pouco tempo depois chegava um telegrama na sua casa, era do Banco do Brasil. Ele não abriu. Ali mesmo o rasgou. Dirigiu-se à barraca para tomar mais uma.
Na sala de aula, todos admirados, olhavam para aquele homem, que naquele momento tornara-se grande.Ele era mais um herói anônimo que foi impedido de brilhar.
Alguém falou: - A história da vida dele dá para encher um livro!
Quando o cabelo estava pronto, ele agradeceu à cabeleireira e se dirigiu a professora, pedindo-lhe um pedaço de papel. Disse que era para escrever algo como agradecimento pelo que tinha recebido. Cuidadosamente puxou uma cadeira, sentou-se e calmamente pôs-se a escrever.
Ao terminar leu o que tinha escrito e disse que àquilo tinha-lhe vindo à mente quando anteriormente estivera internado num hospital. Falou que aquelas linhas ficariam como lembrança dele, pois ia voltar ao hospital para cuidar da perna.
Agradeceu muitas vezes, apertando a mão da professora, que reverentemente olhava para aquele homem sem palavras que expressassem os sentimentos que lhe iam à alma. Tudo se misturava: revolta, raiva, temor, admiração, dor. Calava porque não sabia o que dizer.
Quando o bêbado saiu, todos olharam para os seus pés. Uma das pernas estava num estado deplorável. Inchada, não se percebiam os dedos. Todos estavam como se fosse um pedaço de carne negra e cheia de rachaduras. Provavelmente teria a perna amputada, ou pior, as duas.
Ao partir, deixou uma sensação diferente. Era como se não fosse uma presença real. Era como se não existisse.
A professora disse: - Como é que o Brasil deixou se perder um filho dessa natureza? Como é que a nossa Terra pôs de lado um homem com toda essa inteligência?
Alguém acrescentou: -Verdadeiramente conheci um homem que o vício pode ter destruído seu corpo, mas não conseguiu destruir a essência que o faz grande.