É DANDO QUE SE RECEBE

Ramón, com um exemplar de seu diário preferido, sentou-se em sua confortável cadeira no interior de seu aconchegante escritório. Rapidamente busca a seção de Economia. Industrial, acompanhou os comentários de confiáveis analistas do setor secundário, sua área de interesse. Seguindo prévias instruções, cerca de trinta minutos após seu ingresso a essa sala, a doméstica Jussara, lhe trouxe, em uma rica bandeja de prata, a jarra de água mineral, uma garrafa térmica de café bem forte, seu habitual cachimbo e uma pequena caixa em forma de baú, contendo um fumo importado, inglês.

A negra Jussara trabalha com a família de Ramón há várias décadas. Está acostumada com o distanciamento de seu patrão, que só lhe dirige a palavra para ordenar alguma coisa.

Hoje, ao locomover-se, descuidadamente, tropeçou em um grosso tapete e estatelou-se ao piso com bandeja e tudo. Imóvel, Ramon aguardou a velha negra levantar-se e recompor-se. Silenciosamente, porém com austera fisionomia e uma das sobrancelhas levantadas, conseguiu sinalizar à doméstica sua desaprovação pelo incidente. Jussara, com os olhos lacrimosos, conseguiu maljeitosamente balbuciar um pedido de desculpas. Indiferente ao sangramento no joelho e o natural constrangimento da pobre mulher solicitou urgência na limpeza do escritório. Com uma postura ereta, típica de oficiais nazistas, levantou-se e avisou que aguardaria na sala de estar. Pediu brevidade no serviço. Ali, aproximou-se de um moderno aparelho de som e passa a ouvir um CD de suaves clássicos.

Com os olhos semicerrados, sentiu-se motivado a efetuar uma inesperada viagem para dentro de si. Variados pensamentos assumiram o comando de sua vida naquele momento. Evitou mover-se. Teve a sensação de uma estranha e dominadora força estivesse, naquele instante, subjugando-o. Não opôs resistência. Deixou o rio interno seguir seu curso, manso e obscuro. Nessa interiorização, questionamentos foram se aflorando na mesma proporção de uma repentina curiosidade mórbida do autoconhecimento. Sentiu que era o exato momento dele conhecer-se melhor.

Ramón nunca experimentou verdadeiramente o frio ou a fome. Do ensino fundamental ao superior, cursou as melhores escolas. Falava fluentemente três línguas. Seus bens econômico-financeiros lhe permitiam uma vida nababesca. Luxuosa mansão, carros importados, acesso aos melhores clubes da cidade. Possuía uma bela família. Amava sua linda esposa e o seu saudável casal de filhos. A cada dois meses, viagens para os mais diversos locais. Em sua casa, semanalmente, políticos influentes, eram recebidos para aparatosos encontros. Qualquer mal-estar, dele ou de um de sua família, uma equipe médica era acionada imediatamente. Nada lhe faltava. Ao pensar nisso, sentiu como se grossas cordas estivessem envolvendo vigorosamente seu tórax. Sentiu seus pulmões e o coração apertados. Ele era totalmente infeliz. Viagens internacionais, sucesso empresarial, encontros sociais, momentos de lazer; nada parecia lhe completar. Nem com Deus ele poderia contar, pois era um ateu convicto. Sentia-se totalmente oco, vazio e frustrado, um ser totalmente infeliz. Inúteis as caras sessões psicoterápicas.

Sua viagem interior foi interrompida com a presença de Jussara lhe comunicando a finalização da limpeza no escritório. Pela segunda vez nesse dia, a pobre doméstica conseguia alterar seu humor. Por ter estragado sua meditação, pensou repreendê-la. Ao abrir a boca, porém, em vez de chamar à atenção de Jussara, estranhou quando acabou lhe perguntando quanto ganhava trabalhando em sua casa.

— Ganho bem, doutor Ramón. Quase dois salários mínimos.

— Você é feliz?

— Claro doutor. Tenho os domingos livres e Deus no coração. Posso visitar minha filha e meus dois netos. Com meu salário deu até para comprar uma cadeira de rodas para meu netinho mais velho que é paraplégico. Coitada da minha filha. Está desempregada, o marido sumiu. Não manda nem um centavo para ela. Graças o meu salário, eles estão sobrevivendo. Só peço a Deus, saúde. Na favela onde mora minha filha, dois de seus vizinhos, velhinhos, estão morrendo à míngua. Sempre que posso levo um pouco de mantimentos para eles. Esses, coitados, sim, são uns pobres infelizes, não há ninguém por eles. Só esperam a morte.

Passaram-se dois meses. Ramón era outro homem. Após sua conversa com Jussara dirigiu-se a uma pequena igreja, próxima de sua casa. No silêncio do ambiente, fez uma descoberta que mudou totalmente o rumo de sua vida. Como se estivesse seguindo uma ordem do além foi até a favela conhecer a filha, os netos de Jussara e o casal de velhinhos. Levou consigo dinheiro e comida. Em compensação retornou com uma alegria no coração de valor incomensurável. Naquele mágico momento decidiu jamais se afastar das efetivas ações contidas nesse maravilhoso sentimento chamado Solidariedade.

15/10/2008 22:14

Luiz Celso de Matos
Enviado por Luiz Celso de Matos em 06/12/2008
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