NASCE UM CIDADÃO
Duas da tarde e o sol castigava a caatinga como sempre fizera durante o verão. A vegetação contorcida, sem folhas, não produzia um mínimo de sombra para o conforto dos pequenos animais. Àquela hora, poucos se aventuravam à procura de alimento e água. Quando muito, tentavam um lugar melhor para se protegerem, se é que existia esse lugar naquelas paragens. No chão e no ar não havia nada que indicasse a presença de seres vivos. Pássaros não passavam; nem mesmo eram vistos nos galhos dos arbustos. Não se ouvia ruídos de pisadas nas folhas secas que cobriam o solo ressequido. Quando muito, ouvia-se o som de uma folha que caía dos galhos, lentamente, numa última ilusão de vida.
Cortando aquele cenário desolador, uma vereda branca e sinuosa desviava-se de troncos secos e barrancos, levando uma expectativa sem rumo e sem direção. Fazer opção por qualquer um dos lados não fazia a menor diferença, pois onde quer que chegasse, o resultado sempre seria o mesmo: desolação. O espaço cinzento cortado pela linha branca estava marcado por manchas escuras, onde antes acontecera uma queimada provocada pela ponta de um cigarro jogada irresponsavelmente por um passageiro errante.
Muito além, na direção de um vale, um fio de fumaça subia despretensioso, sem ânimo, indicando a existência de uma cabana. Descendo um barranco marcado por cascos de animais pesados, via-se um pequeno córrego disputado por bois, cavalos, porcos e ovelhas. A água suja, avermelhada, cobria um leito formado por barro espesso que se desprendia do solo ao ser sugado pelos animais que tentavam saciar a sede. O pouco de grama que havia era vorazmente devorada pelas ovelhas, cortando-a rente ao solo. Mesmo assim, ela teimava em crescer para sofrer novo ataque no dia seguinte. Junto às pedras e aos troncos de poucas árvores, acumulavam-se massas de lodo verde-escuro que eram atacadas pelos animais, ao ficar lotado o pequeno espaço.
Quando o sol já se ia derreando para o horizonte, a luta pela água ficava ainda mais feroz. Além dos animais que disputavam palmo a palmo o precioso líquido, vinham as famílias da redondeza com suas latas, baldes e cabaças para se abastecerem. Enquanto os homens procuravam afastar os animais, mulheres e crianças faziam o impossível para colher o que restara. Na verdade, levavam mais lama que água, pois os animais já haviam bebido e pisoteado o leito do riacho, promovendo um lamaçal onde os porcos se refrescavam. O que conseguiam levar era coado em casa em pedaços de pano que antes foram calças e camisas. Era a única forma de filtro que possuíam que nem mesmo o grosso da sujeira conseguia retirar. Alguns ferviam a água antes de bebê-la; outros usavam-na de imediato, tamanha era a sede.
Como a água era uma raridade naquelas redondezas, havia um cuidado de todos em não lavar roupas no córrego. Mesmo vestindo calças e camisas por vários dias seguidos, havia os panos das crianças que não podiam deixar de ir para o molho. A falta de higiene e má alimentação provocavam crises de diarréia que tornavam insuportáveis os odores provocados pelas sucessivas corridas aos banheiros improvisados no quintal da casa. O índice de mortalidade era altíssimo na região e quando chegava o período da seca, ele crescia assustadoramente.
A fumaça, que antes indicava a existência de uma moradia no vale, já não subia além das trempes. As cinzas se encarregavam de apagar o restante das brasas e ao lado uma velha panela enegrecida pela tisna ainda estava suja do que antes fora um mingau de farinha. Algumas crianças barrigudas procuravam força para brincar, mas terminavam por cair num canto qualquer, vencidas pelo desânimo. A mãe gritava, pedia ajuda aos filhos, mas na verdade nada tinha a ser feito, a não ser ajudá-los a morrer aos poucos.
- Zefa, num estraga a água!
A menina, oito anos, mais ou menos, trapos sujos, rosto sujo, cabelos sujos... Só o olhar perdido, sem esperanças, trazia um pouco de pureza. Olhou para a mãe e disse, quase chorando:
- To cum calô, mãe...
- Dá graças a Deus tê água pá bebê! Vai butá teu irmão pá drumi e drome tomém. Drumino passa o calô.
Assim a vida corria, nesse período do ano. Quando não era reclamação por água, era por comida.
- Jão, a farinha tá acabano – gritou a mulher, enquanto balançava um cofo pendurado numa estaca da casa.
O marido deu um longo suspiro e coçou a cabeça. Mais que o peso dos anos, a má alimentação deixara-o esquelético, sem forças, e com imensas rugas no rosto queimado pelo sol. Os cabelos ralos em desalinho caiam na testa como se nunca tivessem visto um pente.
- Tem que economizá, muié. O quitandero já num qué mais vendê a farinha. Ninguém tem serviço pá gente. Pumetero umas cesta, mas inté agora nada.
- Fala pu cumpade Zé arrumá alguma coisa pá gente, home. Diz pá ele que o Chiquim tá duente... Num é mentira mermo! Ele num é padrim do minino?
João balançou a cabeça negativamente e olhou para fora da casa por um instante. Depois, voltou-se para a mulher e falou com tristeza:
- Tu sabe que num gosto de pidi nada a ninguém. O cumpade pode inté me ajudá, mas ele é mitido cum política e quando chegá as inleição vai querê pô cabresto im mim.
- Deixa de bestera, home – disse a mulher – se ele ajudá a gente a gente vai cum ele pá onde ele fô. Num faz diferença nenhuma votá nesse ou naquele canidato. Tudo é farinha do mermo saco. Pobe tem qui votá é im quem ajuda a gente.
- Num vamo cumeçá tudo otra vez, Maria – falou João, procurando encerrar a conversa.
Quase sempre era assim. Quando o assunto era comida, Maria não aceitava nenhum argumento que lhe impedisse de ter às mãos alimentos para os filhos. Depois nunca fora interessada por política. Achava uma grande besteira ter que votar. Para ela, era simplesmente uma maneira de engrandecer que já era grande e dar mais oportunidades para que pudessem pisar nos pobres. Estava tão desiludida com promessas, que não tinha o menor interesse em ouvir os candidatos quando chegava a época das eleições. Via na cidade um grupo de caipiras, que não tinha um lugar para morrer, discutindo quem era o melhor candidato e no final todos acabavam fazendo a mesma coisa, quando eleitos. Para ela o que importava mesmo era ver os olhos dos filhos brilhando de felicidade quando tinham algo para comer. Já não falava em carne, pois era muito luxo para eles. Até mesmo feijão estava difícil de vê-lo na mesa. Só quando Deus ajudava e podia colher no quintal da casa do pouco que plantava.
No dia seguinte, muito cedo, antes de o sol subir, foram ao córrego à procura de água. Era necessário sair cedo para apanhá-la um pouco mais limpa, sem terem que disputar com os animais. João e Maria levavam latas, Zefa, que era a filha mais velha, um balde; Chiquim levava uma cabaça pequena e os outros três filhos menores iam brincando pelo caminho, pois não podiam ficar em casa desacompanhados. Para os pequenos, aquele era um momento de alegria. Sol frio, corriam fincando os pés nus na areia fofa e quando tombavam, davam gargalhadas. O difícil era a volta. A areia já não estava mais fria, as pernas sentiam o cansaço e o percurso já não era mais nenhum motivo para alegria. Queriam vir nos braços, mas não havia braços livres para suportar seus pesos. Na verdade, todos estavam precisando de descanso.
O sol brilhava por entre os galhos ressequidos, quando alcançaram o córrego. A água, embora vermelha, não estava com tanto barro. Cuidadosamente, começaram a pegar a água.
- Mete a vasia divagá no riacho pá num toldá a água – aconselhou João, enquanto observava se havia algum animal se aproximando.
Estavam enchendo as vasilhas, quando chegam vários homens montados em reluzentes cavalos. Um deles, o mais velho, tomou a frente e encarou João.
- Não quero ninguém levando minha água! Este córrego está em minhas terras e a água é para os meus animais. Se estão com sede, procurem o prefeito. Vocês não votaram nele? Pois agora, sirvam-se dele!
- Mas coroné, o sinhô num tem só essa água. Seu gado bebe no açude... Tem o ôi dágua qui nunca secô...
Sebastião Dantas era o dono de toda aquela terra. Homem duro, rude, era conhecido como Coronel, pois tratava seus homens com pulso de ferro. Sua ordem era lei e ninguém a desobedecia. Sob o peso de setenta anos vividos sob o sol escaldante do nordeste na lida diária, parecia uma estátua sobre o cavalo. Não permitia demonstrar nenhum sinal de condescendência. Ter pena, para ele, era sinal de fraqueza e isso ele não admitia nem com os seus servidores.
- Tá arranchado na terra de quem, homem?
- Tô na terra do cumpade Zé Rodrigue, coroné – respondeu, João, enquanto amassava o velho chapéu entre os dedos.
- Pois então, ele não é o Prefeito? Vocês não votaram nele? Ele que faça construir cisterna e mande carro-pipa abastecer. Basta uma vez por semana. Eu não quero é ninguém nas minhas terras.
Enquanto os adultos discutiam a sobrevivência, as crianças brincavam alheias a tudo. Ao redor do coronel, três vaqueiros observavam sem nada dizer. Trajavam gibão, perneira e chapéu de couro. Na cintura pendia uma longa faca afiada. Os cavalos de raça luziam de tanta gordura, nem parecia que passavam por uma das piores secas do século.
- Pelo amô de Deus, coroné, sô sabe que num se faz uma istrada num dia... nem numa sumana. Nóis temo que bebê todo dia. Pense nas criança, qui nem sabe o que tá aconteceno agora!
- Está bem. Vou deixar. Pelas crianças, viu! Mas somente hoje...
- E amanhã, coroné? E nos ôtro dia? Sô sabe que num tem água aqui pur perto, a num sê aqui.
- Aqui eu não aceito mais ninguém tirando água! Vou deixar um homem de prontidão dia e noite com ordem de atirar em quem tentar me desobedecer, entendeu?
- Inhô, sim – gemeu o pobre homem.
À noite, crianças dormindo, João e Maria discutiam como resolver os problemas da vida. Das diversas formas surgidas, a mais lógica e provável era a arribação. Juntar as poucas coisas que tinham e colocar os pés na estrada. Para onde, não sabiam ainda, mas o certo é que não podiam mais continuar naquela vida de cão desprezado. No entanto, não podiam tomar a primeira direção que desse na cabeça, pois não sabiam o que iriam encontrar pela frente. Aventurar o incerto com tantas crianças era uma tremenda irresponsabilidade e ele não tinha coragem para isso. Se fossem somente os dois, ele e a mulher, não pensaria duas vezes, mas só em pensar em ver as crianças sofrendo já lhe apertava o coração.
- Jão, tu te lembra daquela vez que a gente se perdeu quando foi pá festa do casamento da Mariinha? A gente saiu atrasado e pá ganhá tempo pegamo um ataio e quase que num incontramo o caminho?
- Cuma é que eu ia de esquecê? Tivemo que atravessá um riacho chei de lama e chegamo no casóro todo sujo. Foi uma tremenda gozação... – disse o marido, após rememorar toda a aventura de há muito tempo.
- Eu tive pensano, Jão, pruque qui a gente num tenta cava no lado daquele juazero?... Quem sabe a gente num consegue água? É bem mais perto e ninguém vai precurá água pur lá – falou Maria, esperançosa.
- Sei não, muié, na útima vez que passei por lá só tinha arêa e munto capim seco. Se tivesse água o capim num tinha secado. Adispois, tem munta pedra, é difíci de cavá.
Ficaram em silêncio alguns minutos. A noite estava quente e lá fora a lua cheia mostrava claramente a tristeza da área desolada. As árvores eram agora vultos fantasmagóricos, com seus galhos espalhados ao longo do tronco como braços abertos de um monstro de filme de terror. O silêncio mostrava a ausência de animais de toda as espécies. Até mesmo a coruja, que costumeiramente dava sinal de vida, refugiara-se longe dalí. Uma das crianças tossiu forte e o catarro quebrou no peito.
- A gente pricisa de água pá fazê o chá de malva pu Zezim. Cum essa gripe sem tratamento, ele vai acabá teno uma pneumonia – suspirou Maria, imaginando o que seria deles se o menino piorasse.
João pegou um pedaço de fumo, tirou um naco e ia colocá-lo na boca, mas desistiu. Estava com o dia todo sem beber um gole dágua sequer. Mascar naquele momento, seria a pior coisa a fazer. O fumo deixava a boca ardendo no início e depois a produção de saliva provocava uma golda grossa que ele tinha que cuspir. No entanto, estava desidratado e o fumo iria piorar sua situação. Jogou-o no saquinho de couro, amarrou-o cuidadosamente, pendurando-o no cós da calça.
- Madrugadinha vô dá uma oiada no barranco. Se vê que dá, vô cavá um poço pur lá. Vai rezano pu Pade Ciço pá vê se ajuda a gente, pru mode que essa é a única chance que a gente tem.
Na manhã seguinte, João chegou ao barranco do córrego ainda o sol não tinha despontado. As primeiras manchas avermelhadas do alvorecer surgiam por trás da serra e contrastava com a mancha escura da vegetação seca. Ali mesmo ao redor, a única árvore verde era o velho pé de juá que enfrentava as agruras do estio com resistência fora do comum. Com uma picareta, iniciou a árdua tarefa de abrir uma brecha entre as pedras. Primeiro as menores, depois as maiores e então chegou numa camada de areia. Limpou um espaço de um metro e meio de círculo, aproximadamente. Como não tinha uma pá, foi retirando a areia com as mãos. O problema é que em pouco tempo a areia jogada fora começou a cair de volta no buraco, mas não desanimou. Juntou umas pedras ao redor, formando uma rústica parede. Continuou retirando a areia até que outras pedras surgiram. Agora teria que usar a picareta com força, pois eram pedras maiores e estavam presas ao solo. A posição e o espaço de que dispunha não ajudavam. O impacto da ferramenta na pedra ia aos poucos abrindo brechas na rocha, fragmentando-a em pedaços que podiam ser jogados foram sem muito esforço.
Ao chegar em casa no final do dia, João estava cansado e faminto. Na panela entisnada sobre a trempe, apenas um pouco de feijão e um pedaço de toucinho o esperavam.
- É pá ocê, as criança já cumero – disse Maria.
- E você?
- Se preocupe não. Tomei um caldim de feijão. Pode comê tudo – respondeu.
João pegou a panela, levou-a para o terreiro, sentou-se no chão, aproveitando a luz da lua cheia. Levou a primeira colherada para a boca, tomou gosto e aprovou. O melhor tempero da comida é a fome. Não há tempero melhor.
- Tem farinha? – perguntou, avaliando a quantidade de comida existente na panela.
A mulher não respondeu. Em poucos segundos aparecia com uma vasilha de plástico cheia de farinha amarela. João despejou na panela uma generosa porção, mexeu até formar uma pasta densa. Baixou a cabeça e passou a comer sem falar nada. Terminada a refeição, Maria trouxe-lhe um pouco dágua.
- A água tá pouca, tem que conomizá.
- Mas eu vou tê munta água. Eu têo sintino isso, muié.
- Pois é, ocê num falou nada do trabaio hoje!
João entregou a panela para a mulher e levantou-se. A noite já havia chegado de vez e uma leve brisa assanhava as palhas que cobriam a casa. Brisa quente, é verdade, mas se continuasse noite adentro iria refrescar mais tarde.
- Tô quebrano umas pedra, mas eu acho quando eu passá pur essa camada vai dá nágua. Pode num sê munta, mas é uma esperança
Assim ao dias iam passando. Quando não conseguia algum trabalho, entregava-se à procura de água. Era uma tarefa árdua, mas era de vital importância. Certa vez, Maria levantara uma questão que já lhe passara pela cabeça. Ele estava se matando procurando água e se de repente o dono da terra soubesse que o local não era tão seco como pensavam, com certeza ele perderia todo o trabalho. Por isso cavava em segredo. Ninguém sabia o que ele fazia quando não estava trabalhando para alguém. Um dia perguntaram-lhe onde ele estava conseguindo água. Respondeu que conseguia burlar a vigilância do coronel. Se acreditaram, não sabe, mas não mais tocaram no assunto.
Um dia, já quase chegando o inverno, João atrasou-se para o jantar. Noite escura, forte calor e o silêncio ocultando a presença dos animais. Maria começou a ficar nervosa e gritou com as crianças que pediam comida. Não era comum isso acontecer. Ela era muito paciente, mas de um certo tempo começara a viver temerosa. Desde que o marido começara a procurar água, vivia sobressaltada. Temia que ele fosse descoberto e o dono da terra fizesse alguma coisa contra ele. Não sabia ao certo, mas achava que o local onde ele estava cavando pertencia a um adversário político de seu compadre, atualmente o prefeito da cidade. Preparou duas tigelas com caldo feito de farinha, gordura de porco, alho e pimenta.
- Vem comê, bando de atentado! – gritou, chamando as crianças menores.
Enquanto os outros olhavam os menores comendo, Maria recriminou-os:
- Ocês já são grande, tão no ponto de ajudá, mas parece que são os pio! Só vão comê quando o pai de ocês chegá.
Já era tarde quando ele chegou. Não trazia a aparência de cansado e estava sorridente para quem passara o dia todo sem comer. Esse detalhe não passou despercebido para Maria.
- O qui foi qui deu em ti, home? Pru que tá chegano tão tarde?
Sem responder, João procurou a rede de tucum e deitou-se.
- Mamãe, papai já chegô... vamo comê! – gritou, Chiquim.
Maria não ligou para o apelo do filho. Estava achando o marido muito esquisito. Sempre chegava cedo, sujo, suado, mais preocupado em comer que com o asseio, e estava ali, à sua frente, limpo o corpo e a roupa, cabelos penteados e calmo. O que mais lhe chamava atenção era justamente a expressão de alegria estampada no rosto.
- O qui foi, home, ganhô na loteria? – perguntou a mulher, já sem conter sua curiosidade.
- Foi mió que ganhá na loteria, muié. Agora nós tem água. Nós num precisa mais sair escondido pá buscar água, nem tê nojo de bebê. É água limpinha e só nossa.
- Verdade, Jão? Água boa mermo?
- Boa! Nunca tinha bebido água mió. Agora preste atenção: é segredo nosso. Num pode falá pá ninguém.
João levantou-se, deu uma rodada na frente da mulher e pegou na camisa.
- Lavei inté a roupa. A água é tão boa qui nem pricisa de sabão. Cê pricisa vê cuma é uma beleza, a gente tem inté pena de usá. A vontade que a gente tem é de baxá a cabeça e bebê, bebê, inté matá a sede pu resto da vida.
- Fala mais não, home, que eu já tô cum vontade de ir pá lá é logo. Quero tumá um banho bem demorado, lavar os cabelo que nunca mais foi lavado... Já pensô cuma vai ficar os cabelo da Zefa? Tão tão duro que inté parece cabelo de porco. E os menino? Temo que arranjá umas bucha pá ver se tira os cascão. Agora vô pudê lavá meu vistido de casamento, pois eu num tinha corage de lavá cum aquela água enlamiada...
- Mãe, quero cumê! – gritou a criança.
Naquela noite a família jantou unida e silenciosa. Marido e mulher sorriam felizes; as crianças devoravam o caldo de farinha, alheios a tudo o que acontecia ao redor.
Semanas depois, receberam uma visita sazonal. Era um domingo de sol abrasador. Enquanto Maria cuidava do almoço, João colocava comida para as galinhas na frente da casa. Do alto de sua égua alazã, o coronel dava vazão à potência de seus pulmões.
- Como tem passado, amigo João? Como está a sua Senhora?
João suspendeu o que fazia e mirou o visitante. Trajava um terno branco e um chapéu preto de abas largas. A barba grisalha dava-lhe um ar de nobreza, mas só a aparência. A égua gorda, limpa, escovada, portava arreios novos e luzidios. Com certeza estava vindo direto da igreja, pensou.
- Tamo indo cuma Deus qué, coroné.
- Galinhas bonitas, João. Tem botado muitos ovos?
- Muito pouco, coroné. Sô sabe que pá butá ovo, galinha tem que comê munto.
- Sei disso, mas parece que para elas não está faltando comida. Estão gordas.... muito bonitas!
Virou-se na cela e olhou para todas as direções. Examinou a casa, o pequeno cercado ao lado, um canteiro com cebolas, coentros e pimentões viçosos. Junto à janela da cozinha um pé de tomate com frutos maduros, verdes e muitas flores. Ao lado, tinas cheias de água limpa mostravam claramente que a sede não atormentava aquela família.
- O amigo parece que não tem problema com água, não é mesmo?
- Tem razão, coroné. Deu umas chuvinha por aqui e nós aparemo essa água – respondeu, João, sem demonstrar interesse na conversa.
- É estranho, muito estranho!
- O que é que é estranho, coroné?
- Essa chuva justamente na sua casa, homem. A terra continua seca, o capim não brotou até agora. Na redondeza não vi uma só gota dágua nas grotas. Se eu não tivesse visto como a água é limpa eu ia pensar que era do meu riacho.
- Por aí o nhô vê que num é do seu riacho... mas o sinhô num que se apiá, não? Dê um discanço pa pobre dessa égua.
- Precisa não, homem. Na verdade, eu vim aqui pra dizer que você pode pegar a água que quiser lá no riacho, mas pelo que vejo você não está precisando dela. Porém se não chover mais, fique à vontade. Os meus homens estão autorizados a lhe deixar passar com sua família.
- É muita bondade sua, coroné. Brigado. Num vô esquecer sua oferta. Mas de vero mermo, o sinhô num veio aqui só pá me oferecê água, num é mermo, coroné?
Meio sem graça, o coronel Sebastião Dantas sentiu que estava em desvantagem. Sua grande arma nada estava representando naquele momento. Tirou o chapéu, coçou a cabeça, deixando os cabelos rebeldes caídos na testa. Limpou com um lenço branco o suor que escorria pela fronte. Arrumou o lenço no bolso do paletó e acomodou o chapéu na cela..
- Tem razão, meu amigo. Vou direto ao assunto, pois você está muito ocupado com suas galinhas. Como o amigo deve saber, sou candidato a prefeito nestas eleições e quero contar com o seu apoio e da sua patroa. E de já fique sabendo que na cidade pode contar para o que precisar.
João ouviu o discurso do coronel e pela primeira vez sentiu prazer. Não pela água que lhe era oferecida, não pela disposição de ajuda que lhe era prometida, mas pela oportunidade que estava tendo de sentir-se um homem livre. Sonhara muitas vezes com aquele momento e pensara em muitas formas de encarar o coronel e dar-lhe as mais diversas respostas. Às vezes, quando estava nos momentos de maior sufoco, falava sozinho treinando como encararia a posposta que naquele momento estava-lhe sendo feita.
- Coroné, eu e a Maria vamo ouvi premero as proposta dos canidato... Inhô sabe, a gente pensa na gente agora e adispois num vem nada nem pá gente nem pus ôtro e todo mundo fica na mão...
Boquiaberto, o coronel não entendia o que estava ouvindo. Os votos que pensava que fossem os mais fáceis de conseguir estavam escapando pelos dedos como água.
- Que bobagem é essa que estás dizendo, João? Onde já se viu isso? Eu comecei isso aqui, construi a igreja e distribui terra para todos que quiseram construir sua casa ao redor da praça. Ajudei a fazer nascer a cidade com tudo o que ela tem. Sou eu, mais que ninguém, que sabe o que é melhor para ela e para os que nela vivem. Não existe ninguém em melhores condições de administrar esta cidade que eu, ouviu!
- O inhô pensa assim e eu tenho minha manera de pensá. Num se preocupe que eu vô sê justo na hora de escolhê...
- Quem foi que pôs estas besteiras na tua cabeça? Cadê o teu compadre? Ele é o prefeito e o que é que fez pela cidade e pelo povo?
- É pur isso mermo, coroné, que eu num vô mais votá pela amizade. O cumpade já tá sabendo disso, pois eu já disse pá ele o mermo que tô dizeno pu Sinhô.
Sebastião Dantas respirou fundo e procurou acalmar os nervos. Não estava acostumado a receber negativas às suas propostas. Abriu o alforge e retirou uns papéis dobrados com cuidado.
- Eu trouxe umas propagandas minhas para você colocar na sua casa. As fotos não são recentes, mas o que importa é o nome.
- Coroné, o sinhô me adiscurpe, mas eu já cumbinei com Maria e este ano nós num vai pregá retrato de nenhum canidato na nossa casa. Na hora de votá, nós vota em quem achá qui é o mió. Nós pode inté errá, mas erra com o pensamento de qui tá acertano.
Vermelho de ódio, respiração ofegante, Sebastião puxou as rédeas do animal e gritou:
- Imbecil! Um dia tu me pagas estas insolências! Se chegares perto do meu riacho, vais levar chumbo! Chumbo, ouviste!
Esporeando a égua, saiu em disparada. Da porta da casa, Maria e os filhos a tudo assistiram espantados.
- Meu Deus, qui é qui tá aconteceno, home?
- Maria, a parti de hoje, nós somo cidadão!