Encontro Insólito.
Deus estava nervoso, enfim aquela chegada era a mais esperada dos últimos séculos. Há anos ele queria encontrar aquele ser errante e nunca tinha achado a forma correta de abordagem. Ele era o próprio deus cristão. A cara da renovada religião de cristo. Não usava barbas e cabelos longos, muito menos aquela bata branca, ele era uma pessoa dada a modernidades e não queria ser olvidado por uma divindade mais atenta às novas tendências. Usava cabelos aparados a navalha, barba cortada a máquina. Um terno cortado pelo próprio Giorgio Armani, risca de giz, que tinha lhe custado todo um lote de anjos querubins (Giorgio era apaixonado por querubins). Sapatos Prada vermelhos, e um Rolex de ouro cravejado de diamantes. Tinha se vestido à altura daquele encontro tão importante. Ele não era mais aquele velho barbudo do antigo testamento, mas ainda podia-se notar a ira adormecida em seus olhos e a calma de quem não tem consciência.
Nietzsche chegou com seus longos bigodes, a cara de desprezo pelo mundo. O terno cinza apagado, os óculos cobrindo grande parte da cara e os olhos surpresos. Não sabia o que Estava fazendo ali. Nunca imaginou que existisse realmente céu ou inferno, deus e vida após a morte. Ele sempre teve a certeza que veria para sempre a Lou Salomé o traindo, sua irmã tirana tentando corromper seus escritos, sempre teria aquelas intermináveis crises de enxaqueca, até aí tudo bem, ele estava um pouco enganado. Mas estar na presença de deus ele nunca imaginou, nem nos seus sonhos mais insanos, nem nos delírios mais forte em que ele sussurrava o amor pela mulher de Wagner.
O Filólogo sentou-se uma tanto de lado na cadeira. A bolsa no colo, um ar inegável de espanto e certa admiração nos olhos, tanto por estar na presença de deus, afinal, fazia mais de cem anos que tinha morrido e nunca tinha visto nem sinal dele, achava que realmente não existia, quanto por achá-lo tão metrossexual e diferente do que ele imaginara nos livros negros que estudava quando estava no seminário.
- Seja bem vindo meu querido, por favor, fique a vontade. Deixe a pasta no chão. Isso. Quer alguma coisa, um chá? Bolachas? Não lhe ofereço café por que decidi cortar da minha dieta, desde que mandei meu guri lá pra terra tive que segurar a onda. Ele foi pra lá, entrou numa onda de surfistas, fumando umas coisas estranhas, com um papo meio comunista, falando de paz, amor e sexo livre... - Nisso deus perde o olhar na sala e fica fitando uma imagem de virgem Maria, em trajes um tanto ousados para os padrões cristãos, que ele tinha guardado da noite em que cristo foi concebido. Voltando a atenção pelo venerando escritor alemão, como que puxado por um fio que arrebenta:
- Enfim, café me deixa nervoso e acabo sempre descontando neles - faz um gesto apontando para baixo – e já chega o que fiz o guri passar na cruz para pagar uma aposta boba com um amigo, agora tenho que agradá-lo eternamente.
Nietzsche se espantava a cada frase que aquele ser estranho, vestido de maneira muito elegante para ser levado a sério, falava.
- Por favor Fredo, fique tranqüilo, relaxe. Posso te chamar de Fredo, né?
- Desculpe-me, mas uma das coisas que eu nunca me permiti foi ter intimidade com pessoas que pouco conheço, prefiro antes ter confiança, depois intimidade, coisa rara de acontecer. E devemos convir, depois de tudo que disse de você lá embaixo – diz Nietzsche, olhando pra baixo apenas com os olhos, sem baixar a cabeça- deve tê–lo magoado um pouco, sendo que seria uma das últimas pessoas que eu confiaria no presente momento.
- Ah, a sinceridade total, a verdade acima de tudo, a crença indubitável na verdade. A vida no ritmo da natureza. Valeu à pena esperar. Quero que você me trate!!!!
Nietzsche não pode deixar de gargalhar. Uma gargalhada gutural, cínica, diabólica. Uma gargalhada que deus confessaria mais tarde falando com seu venerável guardião, Pedro, só ter ouvido no dia em que decidiu expulsar Lúcifer da chácara no litoral em que eles faziam as festas de final de ano. Chácara de um amigo muito querido de outro universo, o Édem, chácara a qual eles chamavam carinhosamente de Jardim do Édem.
- Que bobagem é essa?!?!?!? Não podia crer em meus olhos vendo tal figura bizarra em minha frente, mas agora tenho que duvidar também de meus ouvidos. Oh razão, que em muitas vezes me deixaste a caminhar sozinho, será que me abandonaste de vez?
Deus argumentou, pediu a piedade d’aquele ser tão inteligente, o qual desdenhara abertamente dele durante sua última estada na terra e que ele, agora indulgente, bondoso, regenerado dos desmandos passados, nada fez para calá-lo. Nietzsche não podia olvidar o sofrimento do seu pai incondicional, ele tendo tantos talentos para colocar razão e clareza na mente das pessoas.
- Não entendo por quem me tomas, mas a curiosidade dos tempos de estudante me assoma novamente a mente e tenho que lhe fazer duas perguntas, se assim permitir-me.
- Quantas quiseres, pois a tua cura não vem pela fala?
- Que bobagem é essa de cura?... Bem, essa não é uma das perguntas, esqueça. Do que sofre a divindade mais popular do planeta?
Deus explicou, com lágrimas nos olhos, que a algumas centenas de anos vem sentindo falta de inspiração, acha-se deprimido, não tem vontade de sair de casa. Mas ultimamente tem sido pior, disse quase aos prantos que tem medo de multidões, se esconde de lugares abertos e com muita gente, desconfia que esta com síndrome do pânico. Depois de deixar-se chorar por uns cinco minutos, disse soluçando:
- E agora estou obcecado por uma pessoa!
- Quem é a felizarda ou felizardo? Pergunta Fredo, mal contendo o riso embaixo do grosso bigode.
Deus se lamenta por seu venerando amigo não levar a sério o sofrimento alheio. Ele não pode dizer o nome da “felizarda”. É uma divindade indiana muito conhecida no oriente, casada com um másculo deus pagão, muito maior, mais irado e mais forte que ele no presente momento.
- E o pior de tudo, não tenho força para enfrentá-lo. Essas divindades indianas têm o costume de sempre estarem cercadas por multidões. É a super população, um erro de cálculo. E agora esse meu medo de gente... Não sei mais o que faço. Juro, Fredo, juro, que se não fosse imortal me suicidaria na frente dela. Com uma carta que jamais seria esquecida na história do universo, a carta mais apaixonada e desesperada de suicídio jamais lida. Ela nunca mais conseguiria ser feliz novamente. Mas nem isso eu posso.
Nietzsche gargalhava, não podia se conter. Era muito, mas muito engraçado para ele ver o deus que comandou o ocidente por tanto tempo, que perdeu o poder apenas para um estado laico que era regido pelo capital, um comandante tão ou mais cruel que ele, se degringolar de lágrimas por uma divindadezinha que nem sequer era mencionada nos livros sagrados das três grandes religiões. Isso era mais que o seu mau humor poderia suportar.
- Não comentarei seu arroubo de adolescente apaixonado, não me permito baixar em tanto o nível intelectual de qualquer conversa, mesmo que seja com um ser como você. - Disse exalando sarcasmo que. – Mas ainda tenho uma pergunta a fazer, por que me acha apto para curar sua dor?
- Você curou o brilhante avô da Psicanálise, pode curar a mim também.
O grande autor póstumo se revoltou. Seus olhos, que até poucos momentos gargalhavam junto com seu corpo, tomaram um brilho vítreo e avermelhado de raiva. Parecia que iriam explodir dentro das órbitas. Esbravejou que aquilo era uma obra de ficção ridícula, escrita por um reles médico de quinta categoria, e que se fosse vivo jamais permitiria que aquilo fosse a publico.
- Imagine eu, ecce homo, ser enganado por um clínico qualquer, isso é impossível.
Nisso levantou da cadeira, os olhos ainda com aquele brilho vítreo avermelhado, os lábios levemente levantados nos cantos, um ar mais sádico que o do próprio deus quando os anjos da justiça destruíam Sodoma e Gomorra, Abriu a bolsa e pegou uma enorme faca de cozinha e partiu em direção a divina alma sofredora gritando:
- Deus estará morto e serei eu o responsável!!!!!
Ludmila acorda suando, salta a parte superior do corpo e senta na cama ofegante. Tateia no escuro o criado mudo ao lado da cama até encontrar a carteira de cigarros mentholados. Acende um com o isqueiro que sempre está dentro da carteira. Acalma-se com a primeira tragada no cigarro, respira fundo e procura o telefone no mesmo criado mudo e disca para seu melhor amigo.
- Sonhei de novo com Nietzsche tentando matar aquele deus que parece o David Bekcham.