A cor do teu vermelho sobre a cor do meu branco
"Aqueles que amam e os que são felizes não são os mesmos"
Marcel Proust
Acho que não saberia explicar a alegria que sinto agora ao te ver aqui, finalmente após esses quase 5 ou 10 ou quem sabe até 20 anos? Eu nem me lembro qual foi a última vez que me senti assim tão feliz por tão pouco, aliás, eu já me senti assim ao seu lado sem qualquer tédio ou obrigação? Durante toda essa eternidade que se desfaz agora com esse seu sorriso, fiquei te esperando entre esse teto e essas paredes e todas essas pessoas de branco, ansiando que você me presenteasse com alguma cor, assim como esse seu vermelho meu favorito em seus lábios e unhas e nos cantos espalhados em seus olhos. Só Deus e eu sabemos o quanto o branco é doentio, nada de paz ou pureza, somente pessoas gritando e se debatendo umas contra as outras contra esse maldito branco que me dá ânsia de vômito, e quando eu vomito o vômito é branco, e isso me dá mais ânsia, por favor não se assuste com essa repetição suja Julia. A última vez que eu vi alguma cor foi o vermelho dos borrões de sangue nas paredes quando eu quis ultrapassá-las e chorei de alegria sem sentir qualquer dor ao ver aquele vermelho vivo quente escorrendo pelo branco virginal daquelas paredes e prostrei-me a Deus em agradecimento. E o pai, como está? Espero que tão bem como eu estou aqui. Ele nunca veio aqui me visitar, me perguntar se estou bem e se preciso de algo. Eu iria dizer que precisava dele, pelo menos uma vez em toda a minha vida. As vezes temo esquecer aos poucos os contornos daquele rosto tão forte e tão triste que era o dele. Quando eu me vejo refletido em algo, principalmente assim nos seus olhos como eu estou me vendo agora, não pisca tá?, eu me lembro demais do pai por lembrar demais ele. A gente é bem igual né? Assim fisicamente eu sou a cara da mãe, mas de resto herdei tudo do pai, desde não saber como lidar com o meu próprio amor até essa coisa de querer ser cego e continuar na escuridão, algo como querer imaginar do que ter certeza. Talvez por isso eu e ele nos tornamos esses cretinos imundos que no final perderam, cada qual a sua maneira, a única mulher que realmente um dia amaram. Fico me perguntando se carrega-se isso no DNA ou é mais uma mera coincidência do destino? Porque eu lutei para não ser como ele, mas no final, estava agindo como ele e olhe só aonde estou por tentar fugir desse meu carma. Eu sempre me pergunto isso e agora vou te perguntar, apenas para confirmar a minha incerteza, quem teve o melhor final feliz: Eu preso neste branco terminal lentamente sendo morto pela minha loucura que se alimenta da minha tristeza ou ele, que vez ou outra estupra a filha porque essa pobre infeliz tem os mesmos traços delicados da mãe que a abandonou? Queria ter mais pena de você Julia, chorar com alguma sinceridade ao te ver assim. Mas eu não consigo nem mesmo sentir piedade de mim, eu nem sei o que eu sinto por mim. Quando ele estiver por cima de você, diga que eu o amo de todo o meu coração e que o perdôo de tudo, mesmo que eu ainda sinta aquele guspe quente escorrendo pela minha face e aquele “você não presta tanto quanto a sua mãe” ecoando em minha mente quase todos os dias.Daqui a pouco, se você me der licença, terei de tomar o meu remédio branco que faz me sentir mais leve e quase tão morto que consigo ver a lucy no céu com diamantes vermelhos. Quero logo que essa sensação de quase morte não seja mais apenas uma sensação. Se lembra da mãe? É, eu ainda gosto muito dela mesmo sem ter tido a sensação de ter uma mãe. Ela de traços tão delicados e olhos cinzas flertando com a surrealidade daquela felicidade que ela irradiava num casamento frustrado, com filhos tristes mendigando pela sua atenção. Espera, você está tão linda como se fosse ela...
Mãe, minha amada Marta, adormecida nos macios olhos de Julia, quase não posso acreditar que seja realmente você na minha frente...Ainda me lembro de você vagando pela casa ao som de Gardel, com aqueles seus passos tão certos quanto a certeza que tínhamos que você não fosse feita para nós. E essa sua alegria humilhava meu pai, porque ele já sabia do seu amante, aquele quase galã dos anos 50 que me dava balas para que eu os deixasse em paz, enquanto estavam no quarto em que você certamente nos concebeu. Hoje eu sei que você nunca me amou e nem a minha irmã, eu sei disso mesmo abraçado a ilusão de que você um dia, por algum momento, nos amou. Você que nos olhava como se fossemos estranhos que compartilhavam a mesma casa com você, e que você tentava manter o mínimo contato possível. E segundo aquela carta deixada sobre a mesa, você havia fugido para Buenos Aires com aquele galã que lhe fazia a mulher mais feliz e mais completa do mundo, e sabia que crianças de 10 e 8 anos compreenderiam isso perfeitamente assim como o marido abandonado. É claro que entendemos isso tanto que, durante muito tempo, rezávamos para que você voltasse logo para nos buscar, porque também queríamos ser felizes e completos. Então eu e Júlia começamos a odiar Deus a cada dia que se passava sem você estar por perto. Enquanto mães se sacrificavam pela felicidade de seus filhos, você nos sacrificavam pela sua felicidade.
Mãe, eu que sempre desde muito cedo invejei aquele seu amante por ter a sua atenção e o seu amor incondicional, e hoje o invejo mais por ter tido o seu corpo entrelaçado ao dele, por ter estado dentro de você e ter chegado mais perto do seu coração mais do que qualquer um de nós. Eu que nunca hei de esquecer os teus olhos cinzas e os teus lábios tão perfeitamente vermelhos contra a sua pele violentamente branca. Branca como todas as paredes que me cercam, branca como essa minha dor vazia de você que está aqui, agora mais do que nunca perto dos meus abraços. Você deixando para trás rosas vermelhas murchas no vaso do seu quarto, murchas como Julia ao longo desses anos ao lado do pai, mesmo depois da tentativa de abandoná-lo, espalhando todo aquele vermelho existente dentro dela por todo o ladrilho do banheiro todo branco, a sua cor favorita não? Você nem soube da partida de Julia. Eu que amava Julia até mais do que a mim mesmo e que encontrava nela esse amor maternal que eu queria que fosse seu. Julia foi embora e me deixou sozinho com aquele que em breve eu seria.
Queria que você tivesse conhecido Sophie, talvez por ser tão igual a você eu me apaixonei por ela.Sophie tão perfeita quanto você ou até mais, Sophie tão você em meu amor doentio.Assim, olhando para você eu posso contornar o rosto de Sophie, o pescoço de Sophie, o mesmo pescoço que ainda sinto em minhas mãos...Sophie...
Sophie, você ainda é aquela de quem eu me recordo entrando em minha vida pela porta da loja de discos antigos em que eu procurava algo para agradar ao meu pai em seu aniversário, talvez qualquer coisa naquele dia, eu não me lembro do que escolhi porque eu só me lembro dos teus dedos deslizando sobre os meus até chegar até aquele álbum branco do Caetano e que eu só ouvi muito tempo depois, quando você era tão minha quanto um dia eu já fui meu, dono de alguma razão. Você tentando me ajudar nessa escolha que até hoje eu realmente não me lembro porque eu só me lembro do seu sorriso dentro dos teus lábios carmins tais como o seu vestido vermelho que usaria mais tarde para me encontrar num bar ali perto, onde me contaria após vários copos de alguma coisa que eu não vou me lembrar agora porque eu só me lembro dos teus olhos multicoloridos, ora azuis quando estava alegre ora meio verdes quando estava triste e as vezes era algo como um verdeazul quando estava apenas comigo, a história da sua vida até ali, até me encontrar, até começar ali lentamente o seu fim.
E assim começou tudo, de alguma maneira começou ali a minha vida. Porque antes eu não vivia de verdade Sophie. Eu morto que andava por todos os cantos procurando algum sentido, desvairado alienado que se contentava com aquele nada que existia no meu peito. Ah Sophie, quisera ter lhe dito isso algum dia quando estávamos juntos. Tantas coisas que calei, que guardei comigo e que agora abro para você.
Sophie, ainda há tanto de você pela minha casa, nada aqui senão a tua vaga imagem, mas lá ainda há os teus cigarros jogados debaixo da minha cama, com o leve sinal do teu batom vermelho e que eu, nesses momentos sem você, buscava neles o resto dos teus beijos que tinham o gosto amargo dos meus.
E as tuas roupas que ainda guardam um pouco desse teu corpo que eu deslizava suavemente, com medo de que derretesse com o calor do meu desejo, ainda estão por lá, em alguma parte em que ninguém mais álem de mim saberá a quem pertenceram.Ah, Sophie, não queria que isso tivesse acontecido.
Me lembro de você assim tão leve flutuando assim como a minha mãe pela sala dançando qualquer tango de Gardel e me levando junto, me conduzindo através do seu corpo por lugares jamais imaginados até o paraíso que é tão somente te sentir dentro de mim e compartilhar das mesmas batidas do seu coração, enquanto eu cantava quase recitando de tão belo e de tão real a nós aquele trecho de Gardel em seu ouvido, aquele assim "Por una cabeza,todas las locuras.Su boca que besa,borra la tristeza,calma la amargura.Por una cabeza,si ella me olvida que importa perderme mil veces la vida, para qué vivir?"*.
Os nossos livros e discos que agora já nem fazem sentido algum para qualquer pessoa mas que tão somente nos completava entre versos entoados por nossas vozes em alguma música, estão em algumas caixas que alguém levará para o lixo onde ninguém mais poderá ouvi-los e senti-los, um final tão trágico quanto o nosso.
Ouço agora o eco de todos aqueles “eu te amo” que você insistia em me dizer e que eu não acreditava por não fazerem parte dessa minha vida. Perdão Sophie por não ter acreditado nesse teu amor tão desprendido e sincero, essa amor que eu tanto procurei em Marta e encontrei em você. Você tão igual a ela mas tão mais humana e irreal.
E você foi parando de dizer que me amava. Não dizia mais em palavras e nem em gestos simples, como um beijo de bom dia ou qualquer pergunta, para saber se eu realmente estava bem.
Talvez você tenha se cansado querida, e deixado para que eu pudesse subtender o seu amor em outras maneiras de demonstrá-lo
Assim eu quero acreditar Sophie, acreditar que você preferiu não dizê-lo mais por simplesmente saber que eu tinha total certeza do seu amor, certeza que não precisava de palavras para saber que ele existia entre nós. Sophie, assim foi a minha mãe um dia, sabia?. Ela simplesmente parou de dizer "eu te amo" nos gestos que acreditávamos serem sinceros assim como você se cansou um dia, e nos abandonou. Não Sophie, você não me abandonou como ela, porque ela apenas nos deixou largados em casa esperando pela sua volta, ano após ano, até que a nossa esperança desaparecesse. Não Sophie, o seu abandono foi o mais terrível e doloroso de todos os abandonos. Era ainda você ali ao meu lado na cama ouvindo Gardel, sorrindo e se despreguiçando enquanto eu a olhava com amor e que estes teus olhos verdes que eu sabia tão bem o que significavam e que não conseguiam refletir o meu olhar. Tão distante assim como Marta dos meus abraços e dos meu beijos, tão fria quando o chão em que costumávamos nos deitar para ouvir aquele teu álbum branco do Caetano, que agora nem ouvíamos juntos. Só você, sozinha na sala ao lado da vitrola, olhando para além daquelas paredes vermelhas, além de mim ali, além de tudo.Não era mais você Sophie, porque você Sophie, me abandonou ali sozinho naquela casa com uma estranha que não sabia o quanto eu a amava.
Você disse assim “Preciso ir embora de você.Não daqui, desta casa, mas de você.Compreende?”. E eu te olhando, fixamente, procurando me encontrar deitado numa cama e dizer a mim mesmo que eu precisava acordar porque eu teria o pior pesadelo de todos. Mas não, eu não me encontrei. E você ainda dizia “Eu não sei de mais nada, eu não me sinto dentro de você apesar de senti-lo dentro de mim. Não sei se você me amou um dia, e agora eu penso se eu realmente te amei um dia”. Eu chorando, sem ter o que dizer, com aquele “eu te amo” calado na minha garganta que forçava um grito. Você pegando as suas coisas, enquanto eu a observava calado, revendo todas as cenas dessa nossa história, contornando novamente o teu corpo assim como eu fazia com o de Marta, através daquele seu vestido vermelho, como todos eram afinal para mim. Você tinha razão Sophie, não era você que estava dentro de mim. Eu Édipo cego de amor e por minhas mãos tão sujas que te tocavam Sophie, mas que só tocavam aquilo que eu acreditava ser Marta, ali no seu corpo, assim como meu pai, que procurava em Júlia tudo o que Marta lhe significava.
Lembra, eu te pedi mais uma chance e você negou-a.
Então eu lhe pedi o seu corpo pela última vez Sophie, e eu jurei para mim e para você que era o teu corpo que eu tocaria, era você que eu teria dentro de mim. E você permitiu tão esperançosa quanto eu de que aquilo pudesse ser verdade.
Sabíamos, aquele era o nosso fim, um adeus depois e eu jogado no chão procurando as cinzas dos teus cigarros misturadas com as minhas cinzas. Eu tentando conviver com as tuas lembranças que vagariam por ali enquanto você seria de outros e eu seria apenas de você, Sophie Marta.
Não Sophie, eu não agüentaria.
Então eu sobre você envoltos naquele meu branco tão doentio quanto esse, tão absortos nessa despedida, tão absorta em se sentir dentro de mim, não percebeu minhas mãos tateando pela gaveta da mesinha de cabeceira, a procura da tua tesoura. Você se sentia feliz dentro de mim pela primeira vez enquanto uma das minhas mãos segurava o teu pescoço e a outra abria a tesoura, mostrando contra a luz aquele fio tão afiado. Você sorrindo, gritando que me amava, e eu ali, a tesoura contra o teu pescoço, você sorrindo pálida, a cor do teu vermelho sobre o a cor do meu branco, a tua cor prevalecendo como os teus sorrisos e as lembranças de todas as cores vermelhas de Marta.
Estirada crua como sempre sobre a minha cama, sorrindo tão branca como o resto do branco que ainda existia naquele quarto, aquele vazio dentro de mim prevalecendo agora sobre a tua cor, você ficaria para sempre ali onde jamais deveria sair.Para sempre ao meu lado Sophie.
Malditos sejam estes que nos tenham separado.
Esse seu amante galã dos anos 50, o meu pai e essa tua dúvida se eu te amava Sophie Marta. Duas partes do meu amor, que eram uma apenas.
Compreende Sophie?
Compreende Marta?
Compreendam assim como eu compreendi o adeus de ambas.
E agora estou aqui, sanatório ouvi dizerem, não sei, não lembro.
E agora sou eu preso para sempre a esse branco doentio que me leva a loucura, procurando qualquer traço do vermelho, minha cor favorita.
Agora, refletido pela primeira vez em anos, vendo vocês todas dentro de mim pelos meus olhos nesse reflexo da janela, algo quase transparente que lhes fazem parecerem fantasmas. Ou eu seria o fantasma?
*Por uma cabeça, todas as loucuras.Sua boca que beija, apaga a tristeza, acalma a amargura.Por uma cabeça, se ela me esquece, que me importa perder mil vezes a vida? Para que viver?
(Por una cabeza-Carlos Gardel)