Ainda resta o sorriso

Ainda resta o sorriso

Havia dias que a razão fazia apenas rápidas visitas. Convivia com seus reflexos entre fumaça e pensamentos randômicos. A tez se tornara pálida e a escuridão das noites indormidas repousava ao redor de seus olhos cansados.

Outra vez o telefone tocou. “Eu sou o outono”. Ana murmurava. “Eu sou a folha seca de Yavorov”. A secretária eletrônica atendeu outra vez.

_ Ana, sou eu novamente. – O ruído de festa contradizia o relógio que marcava quase seis desde a manhã anterior. – Onde você está, menina? O povo do escritório está louco atrás de você.

“O que sente uma árvore que cai no meio da floresta?”. Ela andava de um lado para o outro do apartamento minúsculo que antes costumava estar sempre limpo. “Eu quero outro cigarro”. Sentou-se, nua, no centro da salinha apertada. Aumentou a música que se repetia desde que a aquilo havia começado. Acendeu mais um cigarro e tragou, de uma só vez, o que restou de um copo de uísque aguado que, apenas, estava por ali.

“Quantas vidas foram tomadas hoje nas guerras da África?”. Sentia a bebida no corpo, queria se libertar de suas memórias. “Não tem água nesse mundo que posso limpar nossa alma, Ana. Não tem droga suficiente para aliviar essa dor”.

“Deus, Deus deve ser a solução”. Ergueu os olhos procurando uma resposta. “Se Deus está em todo lugar porque todos olham para cima para olhá-Lo?” E lembrou-se de seus dias de menina, tão longe no tempo e no espaço. Das missas aos domingos, dos beijos roubados por seu primeiro amor atrás da paróquia. Ana fechou os olhos para sentir novamente o gosto da inocência que em seus lábios misturava-se com o salgado das lágrimas.

“O que cabe ao ser humano, diante da dor, são as lembranças doces. Memórias além das lágrimas. O que torna humano o ser é a capacidade de erguer a cabeça e seguir em frente”. Bebeu mais um pouco de alguma coisa que estava por perto. “Balela, nem eu consigo acreditar. Imagino as libélulas, bichinhos meio estúpidos, vai em frente para se queimar na luz ou enfiar a cara na no vidro, e de novo e mais uma vez”. Já não podia entender o que ouvia. “Ana, você é uma libélula”.

Agarrou a meia garrafa de Jack Daniel’s, sorveu outro trago e deixou o chão de pedra fria receber seu corpo. “Como você deixa isso acontecer”. Sentia por dentro o rasgar da ferida aberta pela violência. Olhou as mãos vermelhas de sangue que resistiam em sair. “A culpa é sua, há restos de uma vida em suas mãos”.

Ana olhou para sua cama, sentia ódio de si mesma. “Você o deixou entrar, você o convidou”. Os cortes profundos destacavam no corpo rígido e sem cor.

“Ele te amou intensamente pelas três horas que conviveu com você”. Goles e mais goles e um cigarro atrás do outro sobre o chão frio. Seu corpo iria mudar, seus hábitos precisariam mudar. “Eu vou pintar essa parede de azul, um azul escuro como um lago durante o inverno”.

Aquilo precisava chegar ao fim. Foi ao banheiro cambaleando, lavou as mãos e o rosto. Observou azuladas em seu pescoço, hematomas por todo o corpo. “Eu fui violentada, fiz o que precisava fazer”.Tentava se convencer que não era uma pessoa cruel. “Não precisa ser assim”. Começou a chorar compulsivamente, esperava que as lágrimas a lavassem. Vestiu-se, pegou o telefone, soluçava quando apertou o botão de rediscagem.

_Pedrinho? Sou eu, Ana. (...) Preciso de tua ajuda. (...) Eu fui estuprada, porra! (...) Vem pra cá. (...) Eu matei o filho da puta. (...) Eu vou ligar pra polícia. (...) Obrigada.

Ana sabia que no fim das contas tinha conseguido seu objetivo. Passou pela cama, sorrateira, com medo de acordá-lo. Sentou-se de frente para a porta, com um cigarro o último cigarro nas mãos, seu corpo iria mudar, seus hábitos teriam de mudar.

A polícia arrombou a porta e viu Ana dormindo na poltrona, surpreenderam-se porque mesmo ante tamanha violência ainda restou o sorriso.