MEU PAI, MEU FILHO
MEU FILHO, MEU PAI
Sou pai. Tenho 45 anos. Só isto já bastaria para criar uma história interessante. Mas o que lhes conto aqui está longe de ser simplesmente interessante.
Meu filho tem 12 anos e acaba de entrar para uma gangue de rua.
Meu filho!
Aquele que me fez chorar de alegria tão logo saiu do ventre de sua mãe.
Aquele que embalei e que por muitas vezes, lá, pequenino em sua cólica solitária, buscou abrigo em meu peito e no calor de meu ventre, amenizou sua dor menina.
Era um deus para ele e ele meu maior tesouro.
A cada fabula que contava, mais uma estrela nascia em seu olhar, tamanho o brilho que seu encanto transbordava por sua órbita ocular.
- Pai, como o senhor sabe tanto. Você é um sábio, um bruxo ou os dois. Quando crescer quero ser como você.
Hodierno, me olha com ódio e incompreensão.
Onde está o meu garoto neste olhar negro. Quando o perdi. Quando o verei de novo.
Agora, ele admira outro, mais jovem e mais voraz. Suas palavras antes mel em meus ouvidos hoje, são facas de fel em meu peito.
O que faço para tê-lo de volta, meu minúsculo centeio.
Busquei nos meus 45 anos, bem vividos com o perdão da modéstia, uma fórmula para reaver meu pequenino.
Descobri em primeiro lugar, que ele cresceu e forjou seu próprio eu.
Meu deus, onde estive que não percebi.
Descobri em seguida que ele era forte o bastante para escolher seu caminho, mesmo que este fosse o caminho da dor e da perdição. Mas eu não poderia ficar ali, de braços cruzados, vendo-o cair, ralar os joelhos e a alma. Não!
Mas o que fazer?
Seus deuses agora eram outros. Tive medo e ele me esbofeteou o rosto com a fúria de mil pais órfãos.
Busquei de novo, em meu baú espiritual, algo, alguém que me indicasse um caminho. Que me abrisse uma fresta, uma lucarna sequer, por onde entrasse um fio de luz e esperança.
Agarrei-me aos meus deuses e demônios. Desde os mais significativos em minha lógica adulta até os mais improváveis, em minha loucura juvenil.
Foi quando estava perdido em meu sonho infantil, em meio às fantasias mais extraordinárias de um menino de outrora, que me lembrei de meu pai, que em sua sabedoria paternal, um dia me disse:
“Tudo sucumbe diante do medo, mas este sucumbe diante de um firme olhar. O medo é inevitável, incontrolável, mas não se pode cultiva-lo, não! O primeiro passo para enfrenta-lo é entende-lo e entender-se. Você sabe que você é, só está confuso porque a luz apagou. Aquele vulto em seu quarto, que lhe provoca horror, não é um monstro que balança seus tentáculos ameaçadoramente, a espera de uma oportunidade para engolir mais um menino chorão. É apenas um casaco em um cabideiro que balança ao vento de uma janela aberta”.*¹
Aquelas palavras estavam tão escondidas em meu antro que chamo alma, que já não lembrava mais de sua força.
Há! Meu pai. Onde estavas? Eu sei, estava ali o tempo todo, como uma leve silhueta a acariciar meu ser e eu não percebia, assim como não percebi a metamorfose de meu filho.
Foi ai que vislumbrei uma centelha de salvação. Minha e de meu filho. Algo que não avaliei corretamente. O que sou realmente para ele? Pus meu plano em ação.
Com coragem, fui ao seu encalço. Busquei o beco onde se escondia. Vasculhei ruas e avenidas e não esmoreci um segundo.
Quando o achei, vislumbrei algo que me gelou a alma. Uma pocilga imunda e fétida. Lá jaz meu filho, envolvido naquela nuvem negra que seus olhos não percebiam.
Ele me viu, surpreso, e me desferiu uma pergunta:
- O que você faz aqui, pai?
- Vim conhecer meu filho, ora.
Ele me olhou intrigado, como se mais surpreendido ainda pela minha resposta. Porém, outro me veio falar. Talvez o líder da matilha. Um rapaz magro, mais alto que meu filho, com os braços sarados ou infiltrados por algum anabolizante vagabundo.
- E ai velho, que tu pensa que é pra entrar aqui no mais?
- Ele é...-titubeou meu garoto - meu pai
- Há, teu coroa, saquei, venho salvar o filhote. Só que ele não precisa de salvação, não é brother? Ele ta aqui porque quer. Não é mais aquele teu filhinho que tu trocava fralda, limpava o coco e o ranho do nariz, não. Aqui ele é homem.
Ouvia aquilo com paciência no semblante, mas um ódio enorme no coração.Pensava: quem era aquele filho da puta que ousava me dirigir a palavra. Fedelho nojento! E ainda queria deturpar a imagem minha perante meu filho. Filho da puta!
Engoli a seco, respirei, ouvi mais alguns desaforos, esperei meu tempo (pois todo o dialogo tem um pressuposto tempo, mesmo no mais baixo nível) e só então, respondi:
- Olha o...
- Cabeças – interrompeu o desgraçado- me chamam de cabeça aqui.
- Pois é “cabeça”, eu não vim tirar ele daqui.
- Há não, então pra que veio?
- Vim olhar o dragão.
- Não entendi, eu sou o dragão?
- Era o que eu pensava. Mas olhei melhor e vi que era apenas um casaco num cabideiro, ao vento.
- Ih! O cara pirou de vez. Teu pai toma remédio ou ta chapado.
- Um dia - continuei sem levar em consideração seus comentários - quando era bem menino, estava em meu quarto a noite, e não conseguia dormir, pois a minha frente eu vislumbrei um monstro que me atacava com seus tentáculos raivosos.
- É, ta dopado mesmo. E é crak
- Gritei pelo meu pai e ele veio ao meu socorro. Pedi que não ascendesse a luz, para que eu não visse a face da criatura.
- Ah! já sei, e historia de moral. Ta bom, to com tempo, vai. Até ta divertido.
- Ele me afagou, descobriu minha cabeça que estava enterrada nos lençóis e me mostrou que meu monstro nada mais era que um casaco embalado pelo vento da janela aberta.
- E daí velho.
- Daí é isto. Eu tinha medo de algo que não existia e fiquei com ódio de ter medo assim.
- Hum! Sei, ai tu matou teu velho -gargalhou ele, obscenamente.
- Não. Matei meu ódio com ajuda do meu pai. Não devia temer o medo, pois ele era inevitável. Ele me ensinaria a lidar com a vida. Eu só não poderia cultiva-lo com um ódio. Devia entender o que ele me dizia.
- E o que lê te dizia velho - com um ar debochado, mas de alguma maneiro inseguro.
- O mesmo que me diz agora. Que meu filho escolheu seu caminho - olhei para meu garoto firmemente.
- Ah, agora ta falando minha língua. Gostei.
- É, queria abraça-lo e prende-lo em meu abraço. Que jamais saísse do calor do meu peito. Mas não posso segura-lo. Não posso.
- É isso ai
- Eu vejo em teus olhos o mesmo olhar meu, em meu quarto, ao me deparar com o monstro.
- Opa!
- Não posso vencer teus medos para ti. Só posso mostrar que não passam de casacos ao vento.
- Olha aqui...
- Tudo bem- acalmei o individuo- estou te deixando livre meu filho. É a tua escolha agora e não está sendo fácil pra mim. Mas saiba que se precisar de um amigo, ou apenas de um velho mudo para te ouvir, estarei lá, no teu quarto, com a luz acesa, ao lado do casaco velho no cabideiro.
- Ele não vai precisar, agora vasa!
- Tchau!
Sai vagarosamente, sem olhar para traz, com um oceano represado em minhas orbes. Más uma voz tremula me chamou
-pai... espera por mim.
Gostaria de dizer que tudo o que aconteceu depois foi lindo, mas não foi. Apanhamos os dois, dos membros daquela gangue de filhas da puta. Só nos salvamos de algo pior por que uma alma caridosa chamou a policia. Foram um braço, uma costela, um pulmão perfurado. Mas foi o dia mais inesquecível e feliz de minha vida e acredito que para o meu filho também.
¹ baseado no conto “O Quarto Escuro” de minha autoria