Princesa de cristal
Alice sempre fora o xodó de todos da casa. Filha única, cercada por um irmão mais velho, Lancelot , e um irmão gêmeo, Arthur. Ou, o ‘malinha’, como ela o chamava. A paixão do pai pela Literatura determinara os nomes: os meninos, com nomes fortes, guerreiros, inspirados no clássico escrito por Thomas Malory ; ela, inspirada em ‘Alice no País das Maravilhas’, de Lewis Carroll , uma menina sempre curiosa e perguntadeira.
Alice cresceu como as outras crianças, fazendo manha, birra, travessuras. Jogava os cabelos para trás e dizia:
- Ai, que cabelo chato!
Mas não deixa cortar, nem prender. Reclamava, mas sempre os queria esvoaçando ao vento. Era um raio. Estava aqui e já estava lá. Nunca se pautou muito pelas convenções das tias e das avós, que viviam dizendo:
- Essa guria parece um piá , não pára nunca.
- E olha essas canelas roxas, nem parece uma mocinha.
Ela suspirava, sentava no sofá, ficava quieta. Dentro dela, um bicho-carpinteiro fazia estragos. Desligava. Podiam falar o que quisessem, não ouvia nada.
Tinha uma atração magnética pela estante onde ficavam os livros do pai. Olhava para eles com cobiça nos olhos. Afinal, eles viajavam pelo mundo inteiro, guardavam dentro de si segredos, guerras, reis, fadas, bruxas, guerreiros (como Lancelot e Arthur) e meninas curiosas (como ela, Alice).
Um dia, obrigou Arthur a ajudá-la a empurrar a mesa para perto da estante:
- Quero subir na mesa para alcançar aqueles livros que o pai guarda lá, bem em cima, aqueles livros gordos. Se não me ajudar, eu conto quem quebrou o perfume da mãe.
Arthur gostaria de esganá-la, mas não fez nada. Limitou-se a ajudar a mover a pesada mesa e trazê-la para perto da estante. Isto feito, saiu sem dizer palavra. Alice não perdeu tempo, subiu na mesa e começou a xeretar os livros do pai. Perdeu a noção de tempo, ficou horas ali.
- Alice, o que é isso, menina?
Jurema, que estava na casa desde que Lancelot nascera, assustou-se ao ver a montanha de livros sobre a mesa.
- Como foi que você conseguiu colocar a mesa aí?
- O Arthur me ajudou.
- Pois trate de começar a guardar esses livros, seu Guilherme chega logo.
- Ai, me ajuda Jurema!...
- Preciso terminar umas coisas. Começa a guardar que já venho.
Alice foi colocando os livros na estante, mas o bracinho magro cansou e ao tentar guardar uma enciclopédia, perdeu o equilíbrio, caiu em cima de um vaso e cortou a perna.
Foi uma correria. Jurema chamou um táxi e correu para o Pronto-Socorro. Quando seu Guilherme e dona Rose chegaram, o médico os chamou.
- Olha, o corte é superficial, nada de grave, poderia ser pior. Entretanto, há um problema sério: tivemos muita dificuldade para estancar o sangue. Já solicitei vários exames e gostaria que ela passasse a noite aqui.
Ao ver os pais entrando no quarto, Alice teve medo da bronca que levaria. A mãe conversou com ela, ajeitou o travesseiro e disse que precisava ver como estavam os meninos, voltaria depois. Então, o pai disse:
- Pode deixar, fica com os meninos em casa. Eu passo a noite aqui.
Alice, surpresa por não levar uma bronca daquelas, quando ficou sozinha com o pai, disse:
- Desculpe, pai.
Seu Guilherme sentou-se na cama, passou as mãos nos cabelos da filha, beijou-a:
- Não foi nada, minha princesa de cristal.
Depois daquele dia, Alice nunca mais foi a mesma criança. Já não podia mais correr, precisava tomar cuidado com tesouras, facas e qualquer objeto cortante. Nada de gorduras e, tortura para uma criança, nada de açúcares. Não entendia muito bem, achava que era uma espécie de castigo. O que havia feito?
Cresceu cercada de cuidados, mas isso não impediu que tivesse um séqüito de admiradores e se especializasse na arte da beijocação na última fila do cinema.
Os pais se separaram, um irmão casou, o outro foi estudar longe e Alice, entre uma picada de insulina e outra, cura dentinhos cariados de crianças, que como ela, aprenderam a viver em companhia de agulhas e a perguntar, curiosas que são “Mãe, como é doce?”