Desprezo
Eu intuí toda dor que ela me causaria...
Eu previ cada ato, silêncio, omissão e palavra, mas saboreei seus desatinos como a quem é oferecida a última refeição.
Seus olhos, chuva ácida, e ela me encarava como quem encontra alguém em prazer solitário; eu desmoronava – antes já implodido – e escorria por vielas há tempos renomeadas. (Mas tudo tinha, lá: jardins, portas, postes, ah, as luzes! Eu as mirava bem, e atingia uma, duas, dez, quebrava quantas necessárias ao meu retorno, e em reconfortante escuro recompunha-me assoviando uma canção antiga, ou, por vezes, uma ainda não escrita.)
Quando ela dançava - ou ria - qualquer lógica perdia efeito e causa: o movimento áspero de suas terminações e o som estridente de suas cavidades jamais combinaram com a sobriedade de sua pele, pêlos e desejos, a não ser sob a ótica de minha compensatória filosofia – engendrada de mim para mim, certamente para que eu não enlouquecesse... Eu tateava aquele corpo qual imigrante em língua estranha, a premência e o medo de conhecer, e aquela carne salgada atiçava a fome e matava a sede; após o funeral projetava-se em ânsia novamente, e de novo, e mais uma vez...
De seu pensar errático eu supunha uma voz frágil. Engano! Esfinge devoraria menos, em menor tempo, e sem requintes de elegância ou generosidade. Aliás, sua humildade às avessas, seu pragmatismo, seu abandonar-se, sua inexorável interferência em meus hábitos tão boemicamente conjurados!...
Jamais alcancei sua alma. E tentei! Eu espreitava esquinas do seu sono, na esperança de um som, um líquido, qualquer evidência do crime (pois que era improvável, senão impossível, que espírito ela possuísse, ou a possuísse); eu queria-não-queria provar a tese, ser juiz e júri, libertá-la. (E eu nem sabia o quanto a amava!)
Não houve paradoxos, percebo. Eu projetei em seu espelho meus contraditórios reflexos – e não é isso o amor? Tampouco tomei pileques: bebi, socialmente, seus fluidos e meu uísque, e humanamente a desejei, enquanto fervia com classe de bruxo diplomado as misturas de ciúme, repulsa e tédio!
Por isso - por tudo - não sinto remorsos pelo desprezo com que a encarcerei – o bicho sem alma que ela é! – em uma jaula translúcida, inexpugnável. Minha punição é afagá-la ao meu bel-prazer.
Há hábitos que nunca se superam...
*Para Nora Rabelo – porque me pediu.
28.05.2004