As Casas da Vida

O conto a seguir foi escrito pelo escritor Arphenius, meu amigo, meu irmão e achei tão belo e inteligente que vou citá-lo aqui em minha página. Espero que gostem, leiam com atenção e visitem-no.

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=31731

"Estou desesperado e não sei o que fazer. Alegria me expulsou de casa, fria! Pisou em mim como se eu fosse uma podre larva...

Então, resolvi procurar outra casa, mas somente quem me acolheu devidamente foi Tristeza. Ah, foi tão bom com ela, ela me alentou, me socorreu e me fez ter uma outra visão de meus problemas. Já independente deles, resolvi sair da casa de Tristeza. Não achei nenhuma outra casa com preço justo, e então lembrei-me de Alegria novamente... Aquela Alegria que me amava, que me agradava e que queria que eu morasse com ela para o resto da vida. Aquela Alegria que sempre se preocupou comigo e sempre me deu o carinho e a atenção que sempre quis... Pois é, meu velho, de repente ela me expulsou de casa! Há de entender, há de entender!

Rapaz, deixe-me contar o que veio depois! Outro dia, procurando outra casa, meio a meus devaneios, se dar-me conta, piso na mão de uma garotinha que estava brincando sozinha no chão. Já abriu o berreiro quase em ultrasom. Cheguei a me afastar um pouco dela, aquela gritaria insana e desesperada me assustou. Passou-se um tempo e ela parou de chorar repentinamente, ficando absolutamente séria. Dei dois passos, bem lentamente, em sua direção. Fixou seus olhos vermelhos em mim, sim, olhos vermelhos! Santa química! Me ficou fixando seu olhar, sem desistência. Após uns dois minutos resolvi falar alguma coisa:

-- Ei, garotinha, eu pisei na sua mão sem querer, tá? Você me desculpa?

-- Não sei. -- Disse ela, com o rosto absolutamente inexpressivo.

-- Posso ver como ficou? -- Pedi.

Ela deixou. Sua mão estava sangrando nos dedos anelar e mínimo, e havia hematomas.

-- Onde estão os seus pais? -- Indaguei.

-- No cemitério, morreram anteontem. Estou morando na casa deles e logo ficarei sem comida, mas isso é bom. Ótimo! -- Respondeu-me, ainda inexpressiva.

-- Qual o seu nome? Sabe, eu não tenho casa, então posso cuidar de você, se você quiser... -- Tentei ajeitar a situação terrível dela. Como será que seus pais morreram?

-- Meu nome é Raiva. Sim, pode morar comigo, gostei de você. -- Disse.

Eu disse que iria cuidar dela, mas ela quase ordenou-me a morar com ela. "Ora, ela está sem família, alguém tem de cuidá-la!", pensei. Devia ter uns cinco ou seis anos, não quis me dizer a sua idade. Em uma semana a sua mão já estava boa novamente, mas ela não sentia vontade de brincar. Eu sempre indagava ela, mas ela nunca me respondia de forma convincente -- era como se inventasse desculpas. Eu deixava assim mesmo, dando-lhe a liberdade de falar quando quisesse, e apenas isso. Seus olhos vermelhos realmente me intrigavam! Como poderia, na história da química, haver elementos cujas reações resultassem na vermelhidão dos olhos?! Não havia resposta, pois eu não sou químico, não tenho como entender essas coisas.

Foi maravilhoso enquanto morei com Raiva. No decorrer dos anos, me demonstrou que era educada, compreensiva, amiga e muito, mas muito boa consoladora. Me consolou todas as vezes que me lembrava de Alegria e Tristeza. Me dizia palavras que me faziam entender o sentido da vida, que garota extraordinária! Me ensinou a esmurrar as almofadas de casa, a cada vez que eu não gostasse de algo que me tivesse ocorrido. Mente extremamente superior para a sua idade, devia ser um gênio. Foi a melhor experiência pela qual já passei, cuidar de Raiva. Assim que fez dezesseis anos, resolveu ir embora para outro país e deixar-me a casa de presente de gratidão. Eu não quis aceitar, mas ela me forçou a isso.

Continuei a viver normalmente na casa de Raiva por um bom tempo. E mais, a casa de Raiva agora era minha. Eu vivia bem, mas de vez em quando sentia uma que outra dor no peito, não entendo o porquê. Certo dia que não agüentei mais de dor, resolvi adentrar na floresta -- que ficava a alguns quilômetros de minha casa -- para procurar algum consolo espiritual. Chegando lá, olhei para as árvores, para o chão coberto de musgos. Percebi uma minúscula trilha de um filete de água. Resolvi seguí-la. O filete ia lentamente se alargando. "Hum, acho que, mais pra frente, dará num rio", pensei. De fato. Seguindo o rio, nem ligava mais para a paisagem, estava fixado nele. E não foi à toa, cheguei no final e lá havia uma belíssima, altíssima cachoeira, com a água azul-esverdeado dos filmes! Entre o céu e o ponto de deságüe, as gotículas de água formavam um semiarco-íris, iluminado pelo Grande Astro, atrás. Que cena, se eu soubesse pintar...

De repente, escuto uma voz de indescritível som, vinda de trás:

-- Que ser estúpido invade meu recinto?!

Olhei pra trás, desesperado, tremendo. Era uma sombra, de fato, uma sombra!

-- Hãn... É q-que eu s-segui um filete de ág-gua e pa-parei aqui s-sem querer... -- Gaguejei.

-- Estúpido! Não há filete algum de água por aqui, conheço esta porcaria há milênios! -- Berrou a sombra, continuando: -- Agora não sairás mais daqui, putridez existencial! Nunca mais! -- e riu, riu como se fosse aquele ser que os cristãos inventaram, Satanás. Estremeci por dentro e me senti nulo. A sombra nunca me disse uma palavra, entretanto eu sempre soube o seu nome. Ódio. Sim, era Ódio o seu nome, era o que os atos dela demonstravam. Fazia rituais pagãos com os animais que ali passavam, sempre me chamando -- com gestos -- para participar deles, e não me dando sequer opção de escolher. Pobres animais...

Aquela floresta, que saciara minha dor, agora deixou-me com frio. Um frio diferente, não como aquele que sentimos à noite, um frio da alma. Não me importava com nada mais, apenas queria sair dali. E saí. Um dia em que Ódio ausentou-se, fugi de lá correndo como as lebres cujo sangue eu tomara. Corri sem olhar, nem para frente, nem para trás. Apenas corri. Enfim, cheguei em outro vilarejo, pacífico. Entretanto, não fazia mais diferença, eu só pensava em dormir, descansar. Deitei abaixo de uma ponte e acordei uns três dias depois, no topo de uma pirâmide. Não entendi nada, o mundo estava diferente! A terra tinha textura de água e o céu que parecia terra! As nuvens estavam embaixo de mim, bizarro! Mas era interessante, parecia que eu estava caindo de cabeça para baixo... E sim, de repente comecei a cair, cair, cair... Caí durante muito tempo, tanto tempo que dei um nome provisório para ele, chamei-o de Desespero. Quando eu não agüentava mais cair, já estava na metade do percurso. De repente, começou a ficar tudo escuro, um leve degradê para preto, de todas as cores pelas quais eu passava. Aos poucos, o preto foi ficando cada vez mais envolvente, até que desmaiei. Acordei na absoluta escuridão, não havia como enxergar nada, nada. Ao tato, senti que estava barbudo, uma barba que jamais cresceria durante o tempo que se passou. De vez em quando, umas luzinhas, pareciam estrelas, piscavam ao meu redor, fazendo um quase inaudível som parecido com o som de uma pinça, quando utilizada inutilmente. Luzinhas vermelhas, amarelas e verdes. Às vezes umas azuis, mas as raras eram as brancas. Elas pareciam até estar dizendo alguma coisa, com o tempo consegui decifrar. Se chamavam Esperança, até achei estranho todas terem o mesmo nome. Diziam que eu deveria tentar pegá-las, pois assim conseguiria ver novamente. Demorei mais tempo tentando pegá-las do que o tempo que fiquei caindo, mas, enfim, consegui. No que peguei a estrela, me senti fortalecido. Olhei para as minhas mãos, para depois abrí-las, podendo ver a estrela e libertá-la. Assim que a soltei, ela lenta e aleatoriamente voou para cima, e a imagem do lugar começou a se formar. Não há como descrevê-lo, é feito de energia. Vivo meu momento mais feliz nele, agora. Hoje vejo todas as estrelas que falavam comigo; e posso falar com outras que eu não via, as pretas. São as mais legais de todas, as outras são muito "certinhas". Por eu não vê-las, elas se apresentaram diferentemente para mim.

Se apresentaram como Solidão."

Arphenius.

Matheus Mendes
Enviado por Matheus Mendes em 23/11/2008
Código do texto: T1298870
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.