A Vida é Bela... Para Alguns
No dia 13 de junho de 1972 nasceu uma pobre menina parda de olhos dourados e cabelos cor de palha seca, oriunda de um bairro de classe baixa, filha de um pai agressivo e uma mãe vitimada pelo mesmo. Seu nome era Doralice, mas podemos chamá-la de Dora, assim como sua mãe determinara.
Dora, como todas as outras meninas de sua comunidade, nascera pobre e sem muitas expectativas de vida. Seu pai era pedreiro e sua mãe catadora de lixo, mas não por tempo integral, pois tinha de cuidar de seus quatro filhos. Quando o pai saía da comunidade onde moravam e ia até a cidade atrás de trabalho, Dora, sua mãe e seus irmãos (duas meninas mais velhas e um menino mais novo) recebiam à incumbência de ficar em casa e não saírem por nada. A mãe de Dora não sabia ao certo o motivo, mas desconfiava de que ele achasse que ela se deitaria com outro homem.
Após Dora completar seis anos de idade, sua mãe decidiu matriculá-la numa escola que ficava a dois quilômetros dali, mas esbarrou na impiedade do marido, que disse que ela deveria ficar em casa e aprender os serviços domésticos com a mãe, para um dia cuidar da casa sozinha enquanto a mesma ia para o lixão.
Durante quatro anos, mãe e filhos acordavam às 05:00h para ir ao lixão recolher o que ainda teria utilidade, como sapatos, bonecas e roupas velhas, sem falar da comida. Ah, a comida! Isso sim era bom encontrar.
Aos sete anos de idade, Dora achou em meio ao entulho, pela primeira vez, uma caixa de ovos podres, mas não podia discernir o mau cheiro, pois o lugar em que estava era de doer as narinas.
Hoje o pai iria gostar do jantar.
Há três meses seu pai ganhou um relógio de parede de um antigo patrão, que o deu como parte do pagamento de uma obra. E foi nesse que a menina Dora viu seu pai entrar pela porta exatamente às 20:06h e percebeu que seus olhos estavam voltando de uma longa tarde de lágrimas. Seu coração desfaleceu. Seu pai, até então, cruel e insensato, é visto pela primeira vez como a vítima da história. Motivo? Ao entrar na comunidade teve uma arma apontada para sua cabeça (às 16:53h, mas disso Dora não sabia) e que se não pagasse a dívida em sete dias, sua esposa e filhos morreriam. A dívida em questão tinha nove meses, e o cedente esperou até por demasiado. Enfim, dessa semana não passaria, assim garantiu. O pai de Dora passou mais de três horas na casa de um amigo contando o que ocorrera, e esse o consolou.
Depois desse fato, o pai de Dora teve sérias dúvidas se contava ou não à esposa, pois depois de tanto tempo, percebeu que era o que tinha de mais valioso na vida juntamente com os filhos.
Vou contar.
Essas foram as palavras que o pai pensou e naquele momento (dois dias depois do ocorrido) decidira contar à sua cônjuge.
A expressão de derrota tomou conta do pai enquanto a mãe derramava lágrimas silenciosas afim de não acordar os filhos. Só havia uma solução naquele momento já que o dinheiro da dívida não estava em mãos. Fugir. Isso mesmo, fugir. Mas para onde? A família de Dora se encaixava perfeitamente no dito “não tem onde cair morto”. Eram paupérrimos e dependiam daquele lixão para viver. Então, decidiram procurar outros lugares que teriam lixões, e até encontraram, o problema é que estavam lotados demais e os moradores não pareciam ser muito receptíveis com novos moradores.
O pai teve uma visão do fim, seu destino era morrer ali mesmo. Não dava uma condição humana digna para seus filhos viverem, um fato que nunca o incomodou até o momento, pois fora criado da mesma forma. Num demorado diálogo (algo difícil na família), o pai e a mãe discutiram novamente o que seria melhor para o futuro de todos. E a escolha foi justamente o que você mais teme.
A morte.
Sabiam que nunca sairiam daquele lixão e já não dava pra aguentar tantas doenças entre os filhos. A vida era uma desgraça total e a decisão foi aceita com lágrimas, mas com um tom de conforto.
Já passados oito dias, o perigo bate à sua porta. Eram 23:45h. O pai não foi trabalhar naquela semana e a mãe poucas vezes foi ao lixão alimentando assim a confusão entre Dora e seus irmãos. A visita indesejada teve de arrombar a porta e, totalmente embriagada, perguntou ao pai se já estava com o dinheiro. Ao ouvir a resposta negativa seguida de lágrimas e desespero, mirou a arma para a mulher e com um ofegante “Eu avisei”, disparou o primeiro tiro. Quando a fumaça baixou, viu que a bala estava cravada no peito do pai, que segundos antes, se jogara na frente da mãe de Dora. A mãe desesperada – naquela altura as crianças já tinham acordado, mas se mantiveram em silêncio – caiu em lágrimas e gritos e nem viu os dois tiros seguintes que a atingiram na barriga. Ao entrar no quarto das crianças já com o peso tirado das costas, o autor do crime disse que estava tudo bem e que não precisavam se preocupar, pois seus pais eram pessoas más e agora elas iriam viver melhor. Ainda cambaleando, pegou as quatro crianças e as conduziu ao seu carro e logo em seguida as deixou num orfanato a cinco quilômetros do lixão, numa madrugada sangrenta.
Dora e seus irmãos viveram no orfanato por uns anos, mas aos quinze, ela decidiu fugir e voltar ao lugar onde nasceu para encontrar uma resposta que, nem se quer, sabia de qual pergunta viria. No lixão, ela se ajoelhou e chorou por aproximadamente trinta minutos. Havia duas pessoas naquele lugar: Ela e sua mãe. Dora amava sua mãe mais que qualquer outra coisa na vida, e nunca aceitaria sua morte por motivo nenhum. Viu então que sua vida não podia ficar daquele jeito e descartou a possibilidade de voltar ao orfanato. Então tirou do seu bolso a chave de sua velha casa, que sua mãe entregara horas antes de morrer. Ao receber a chave e um longo abraço consolador de sua mãe, no fundo Dora sabia do que se tratava, mas, apesar de sua pouca idade, hesitou ao perguntar.
Dora seguiu sua vida assim como seus pais lhe ensinaram e se casou tendo um casal de filhos. A menina carregava no nome a saudade da avó que nunca conhecera. Seu nome era Vitória.
E assim, o filho recebera o nome de Mateus, em referência ao primeiro apóstolo do Novo Testamento.
No final da década de 90, seu marido a deixa viúva com uma morte tranqüila de uma doença que eles não sabiam qual era. Três anos depois, completamente desolada, Dora viu que o futuro de seus filhos seria caótico assim como o seu e decidiu levá-los ao mesmo orfanato onde crescera para ter a educação e alimentação que nunca tiveram. Dora nunca havia voltado àquele orfanato desde o dia em que o deixara, e assim nunca mais viu e nem teve notícia de seus irmãos. Dois dias depois, Dora fez a última oração de sua vida pedindo desculpas a Deus pelo que viria a seguir e com a arma que seu marido deixara, tirou sua própria vida no ano de 2001. Naqueles dois últimos dias de reflexão, após deixar seus filhos no orfanato, Dora pensou na possibilidade de o futuro de sua família ser cíclico, já que cresciam no lixo e mais tarde iriam para o orfanato, totalmente sem destino. Ela também voltou no tempo e analisou cada momento de sua vida, mas enfatizou aquilo que seriam as últimas palavras que a pessoa mais importante de sua vida lhe deixara antes de morrer. Com os olhos lacrimejantes, sua mãe disse:
“Eu te amo, minha filha, e sempre estarei com você”.