O Bilhete (i)Real
Helena Couto de Magalhães, 46 anos, foi casada com Benicio de quem recebia bofetadas todas as quartas-feiras à noite, dia sagrado para Joana observá-la de seu apartamento de onde transitava nua e cantarolava canções de Célia Cruz.
Trabalho não tinha. Filhos: ficou no desejo de um dia poder vê-los correr pela casa. O útero: perdeu depois de uma longa batalha que vencera contra o marido. Ainda hoje sente a dor em seu ventre e um vazio no coração que não soube amar uma criança. O medo a perseguia, mas os olhos da vizinha a acolhiam. O sorriso nunca vinha, mas Joaquim Benicio marcava presença sempre que sentia coragem para agir.
Hoje, viúva e admirada pela fiel observadora, Helena trabalha na maternidade do Hospital Municipal. As noites permanecem torturantes, pois não consegue escapar da imagem do falecido.
Estava grávida de dois meses quando da última e violenta aproximação covarde de Joaquim, que, com sua mão áspera e dura, acertou o centro da gestação causando a despedida de Helena ao nino que amara tão antecipadamente.
No caminho para o trabalho, Helena sempre passa por uma estrada que, em dias secos, cobre o ar de uma neblina sufocante de terra e, em dias úmidos, constrói largas piscinas cheias de um vermelho-terra lodoso. Os acostamentos da estrada em dias primaveris são cobertos por flores vibrantes e mariposas buscando o melhor lugar para assentarem. Em dias invernais os campos são verdes vivos que, todas as manhãs, exibem a fina camada da geada noturna. Na estrada havia 2 bancos de fronte. Nos dias floridos Helena escolhe um para apreciar a paisagem e ler dos romances que preenchem a estante velha de sua casa.
Num desses dias de apreciação da leitura, Heleninha percebeu alguém sentar-se no banco oposto. Sem intimidar-se, olhou por cima das páginas e constatou o olhar observador de um homem. Ombros largos, olhos grandes e azuis como o céu. A boca carnuda e a pele clara revelavam as misturas de etnia. A aparência não lhe acusava mais do que 30 anos. O pé esquerdo apoiado sobre o joelho direito, e entre os dedos da mão esquerda, o filtro branco que expelia uma nuvem fumarenta cada vez que abandonava a boca. O chapéu de palha encaixava bem à cabeça e a cada vez que sabia ter sido notado abaixava-o lentamente com a ajuda dos dedos sinalizando cumprimento. Ela rapidamente ergueu o livro para encobrir o rosto. A cena se repetiu 3 vezes. Até que Helena levantou-se e seguiu rumo ao hospital.
No dia seguinte, o caminho foi retomado. Helena tinha tempo de sobra para chegar ao trabalho. Embaixo do braço trazia o mesmo livro do dia anterior “Bianca em: O Encontro Casual”. Sentou-se no mesmo banco. Dentro de poucos minutos lá estava ele. A mesma posição, os mesmos gestos, o mesmo olhar. Helena olhara por cima do livro. Só os olhos. Fixados nos dele. Deu-se um tempo maior que no dia anterior. Levantou-se e seguiu.
Um novo dia. O mesmo caminho. O mesmo livro. O outro banco. Sentou-se e cruzou as pernas. Borrifou uma loção pelo pescoço e seios. Aguardou. Nada. Ninguém. Sentiu o vento lhe soprar os cabelos. Olhou para um lado e para o outro. Nada. Levantou-se e seguiu.
Mais um dia. O trajeto de sempre. O livro já não fazia mais sentido, porém estava sempre a lhe acompanhar. Escolheu o banco do dia anterior. Um olhar destemido para um lado, outro desiludido para o outro. Ninguém. Sua companhia era o vento que lhe tocava o rosto e lhe enchia os olhos de tristeza. Pegara um papel dentro do livro e uma caneta na bolsa. Um bilhete foi posto sob o banco. Retomou o caminho do trabalho.
Nem mesmo os primeiros raios de sol estavam à postos no horizonte e Helena já se aprontava. Queria permanecer mais tempo apreciando a leitura antes do expediente. O mesmo livro. A mesma estrada. Sentou no outro banco. Diferente do dia anterior. Olhou para um lado e para o outro. Ninguém. Abriu o livro. Os olhos remexiam para um lado e para o outro. Decidiu se levantar. Mas algo lhe soprava o ouvido dizendo para ficar. Helena tornou a sentar e foi tomada por uma força vibrante que lhe estufava o peito. Uma breve lágrima correu o rosto. Tão logo o firmamento iria derramar sua compaixão sobre a Terra e Helena estava ali, sentada, esperando algo que não chegava. Levantou-se a fim de não ser surpreendida pela torrente. Quando posicionou o corpo para abandonar o lugar, ouviu uma voz. Uma voz segura, mansa. Uma voz pedindo a ela que ficasse mais um pouco. Helena virou-se. E o corpo viril que seus olhos registravam estava completo. As baforadas do filtro branco eram intensas. E o olhar dele, intimava o dela. Ele lhe estendeu a mão, a fim de cumprimentá-la, ela rejeitou. Ele lhe deu um sorriso brando, ela silencia. Ele lhe abriu os braços, ela se retirou.
- Hey. Aonde vai?
- Vou para o trabalho. Não posso mais ficar aqui.
- Por quê? Estou lhe fazendo algum mal?
- Não é isso. Mas é que tenho que ir.
- E o bilhete?
- Que bilhete?
- O bilhete que deixou embaixo do banco. O que quer dizer?
- Quem disse que era pra você?
- Acho que não são muitas as pessoas que passam por aqui. Não pessoas como eu.
- E o que tem de diferente das outras pessoas?
- Eu sou livre.
- E as outras pessoas não são?
- São dominadas.
- Acha que eu também sou?
- Se eu bem entendi o bilhete...
- Como agora entendeu? Disse que ficou confuso.
- E vou continuar confuso se não me explicar.
- Mas não precisa de explicação.
- Claro que precisa. O que quis dizer com “Se você for real”?
- E não é?
- E se eu não fosse como estaria falando comigo?
- Talvez eu também não seja mais. Já perdi tanta coisa boa e tanta coisa ruim nessa vida. Já estou tão calejada que às vezes penso não ser mais desse mundo.
- Mas você é bonita. Como pode ter se deixado ser tocada com tanta brutalidade?
- Como sabe disso?
- Um passarinho me contou.
- Vou embora. Você é estranho.
- Não entendo.
- O que mais você não entende?
- O bilhete.
- Mas já expliquei.
- Não explicou não. Você tentou.
- Mas nem lembro mais o que escrevi nesse bilhete.
- Quer que eu leia pra você?
- Não.
- Por que o medo?
- Não estou com medo.
- Então?
- Não quero sofrer.
- “Se você for real, me deixe conhecer você melhor.”
- Por que está fazendo isso?
- “Se você não for real, me deixe ir junto com você.”
- Por quê?
- Eu pensei não ter entendido. Mas agora eu sei bem olhando nos seus olhos.
- Como se chama?
- Você quer me conhecer melhor ou quer ir junto comigo?
Helena estendeu sua mão ao encontro do homem que a traz pra perto dele.
O peso que as nuvens suportavam caiu sobre os dois, feito banho acolhedor. E ele deixou Helena ir junto, para qualquer que fosse o lugar. Ela desejava estar com ele. E não se preocupou em saber nem mesmo o nome. A menos que ele fosse real.